sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Língua e Herança



Capa: 
 A Construção da Ideia da Lusofonia em Portugal
Não chóro por nada que a vida traga ou leve. Há porém paginas de prosa me teem feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noute em que, ainda creança, li pela primeira vez numa selecta, o passo celebre de Vieira sobre o Rei Salomão, "Fabricou Salomão um palacio..." E fui lendo, até ao fim, tremulo, confuso; depois rompi em lagrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquelle movimento hieratico da nossa clara lingua majestosa, aquelle exprimir das idéas nas palavras inevitaveis, correr de agua porque ha declive, aquelle assombro vocalico em que os sons são cores ideaes - tudo isso me toldou de instincto como uma grande emoção politica. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda chóro. Não é - não - a saudade da infancia, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção d'aquelle momento, a magua de não poder já ler pela primeira vez aquella grande certeza symphonica.
Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. - Fernando Pessoa





Quando minha filhinha mais velha completou  1 ano e meio sem pronunciar uma palavra sequer (nem mesmo mamãe), o pediatra começou a se preocupar. Organizou e requisitou uma bateria de testes para ter certeza de que a menininha não tinha nenhum problema de audição, fala etc. Feitos os testes (embora todos tenham apresentado resultado negativo),  chegou-se à conclusão de que ela deveria ser acompanhada por determinados profissionais, tais quais uma fonoaudióloga que a visitaria uma vez por semana, só para garantir…
O meu coração de mãe de primeira viagem culpou-se o tanto quanto pode ante aquela situação imprevista. Multipliquei todos os esforços e reavivei a professorinha que havia em mim, tirando todos os truques da cartola, entre livros, músicas, brincadeiras, abecedário e mais. Grávida, então, da segunda filhinha, achei que se fazia necessário uma solução conveniente, prática e rápida, pois a vinda do novo bebê poderia complicar ainda mais aquele cenário. Tomei uma decisão muito séria, embora desejando que fosse temporária, e que considero qual sacrifício dos mais penosos em nome do desejo de ajudar no seu progresso: deixei de falar em português com a filhinha, passando a usar apenas a língua inglesa, a mesma usada pelos “profissionais” que trabalhavam com ela semanalmente; a mesma que ela ouve diariamente no país em que ela nasceu, mora, interage e cresce.
Aos olhos de uma pessoa comum, este detalhe passa despercebido. Entretanto, sinto como se a principal (e, no momento, única) herança cultural que eu poderia diretamente oferecer às minhas menininhas lhes fosse cruelmente negada.  Não bastasse a falta de convívio com os avós maternos, família e amigos brasileiros, os quais em suas cabecinhas infantis fazem todos parte de um mundo quase abstrato, quase lúdico, a elas apresentado em forma de algumas poucas fotografias e, eventualmente, vozes ao telefone; não bastasse ainda a escassez de materiais, brinquedos, livros bilíngues aos quais ambas tivessem acesso, até mesmo o diálogo em português é inexistente em suas tão jovens vidas.
Sim. Sem dúvida terei tempo de corrigir tal “detalhe”. Mas este não é o ponto em questão.
Amo meu país. Amo minha língua. Fiz dela um meio de ganhar a vida. Trato-a com carinho, respeito e dedicação. Aprendi que minha Pátria é minha língua e vice-versa e por isso trago ambos no peito e na mente. Dela me utilizo desde que me reconheci enquanto pessoa para expressar meus sentimentos, idéias, sonhos, projetos. Sofro ao vê-la maltratada, regojizo-me ante sua beleza e magnitude. Com ela sonho, revejo, reconstruo. Canto as canções do meu povo. Recito os poemas mais belos. Maldigo as notícias mais revoltantes. Grito o nome do meu time. Balbucio palavras de amor. Xingo. Gaguejo. Construo textos. Fabrico testes. Repito as frases ditas. Descrevo as paisagens da minha infância e as passagens da minha vida. Falo. Escrevo.

Ela é tudo o que verdadeiramente possuo. É com ela que me reconheço. Ainda que fosse poliglota, viajasse aos quatro cantos do planeta e jamais voltasse a ouvir minha língua mãe, ela estaria gravada no meu íntimo como parte do ser que sou, qual traço de DNA, carregando com ela minha cultura, meus antepassados, meu país e sua história.


domingo, 25 de outubro de 2009

Fadado

Aníbal Nazaré e Nelson de Barros: "Fado Falado"


Fado Triste
Fado negro das vielas
Onde a noite quando passa
Leva mais tempo a passar
Ouve-se a voz
Voz inspirada de uma raça
Que mundo em fora nos levou
Pelo azul do mar
Se o fado se canta e chora
Também se pode falar

Mãos doloridas na guitarra
que desgarra dor bizarra
Mãos insofridas, mãos plangentes
Mãos frementes e impacientes
Mãos desoladas e sombrias
Desgraçadas, doentias
Quando à traição, ciume e morte
E um coração a bater forte

Uma história bem singela
Bairro antigo, uma viela
Um marinheiro gingão
E a Emília cigarreira
Que ainda tinha mais virtude
Que a própria Rosa Maria
Em dia de procissão
Da Senhora da Saúde

Os beijos que ele lhe dava
Trazia-os ele de longe
Trazia-os ele do mar
Eram bravios e salgados
E ao regressar à tardinha
O mulherio tagarela
De todo o bairro de Alfama
Cochichava em segredinho
Que os sapatos dele e dela
Dormiam muito juntinhos
Debaixo da mesma cama

Pela janela da Emília
Entrava a lua
E a guitarra
À esquina de uma rua gemia,
Dolente a soluçar.
E lá em casa:

Mãos amorosas na guitarra
Que desgarra dor bizarra
Mãos frementes de desejo
Impacientes como um beijo
Mãos de fado, de pecado
A guitarra a afagar
Como um corpo de mulher
Para o despir e para o beijar

Mas um dia,
Mas um dia santo Deus, ele não veio
Ela espera olhando a lua, meu Deus
Que sofrer aquele
O luar bate nas casas
O luar bate na rua
Mas não marca a sombra dele
Procurou como doida
E ao voltar da esquina
Viu ele acompanhado
Com outra ao lado, de braço dado
Gingão, feliz, levião
Um ar fadista e bizarro
Um cravo atrás da orelha
E preso à boca vermelha
O que resta de um cigarro
Lume e cinza na viela,
Ela vê, que homem aquele
O lume no peito dela
A cinza no olhar dele

E o ciume chegou como lume
Queimou, o seu peito a sangrar
Foi como vento que veio
Labareda atear, a fogueira aumentar
Foi a visão infernal
A imagem do mal que no bairro surgiu
Foi o amor que jurou
Que jurou e mentiu
Correm vertigens num grito
Direito ou maldito que há-de perder
Puxa a navalha, canalha
Não há quem te valha
Tu tens de morrer
Há alarido na viela
Que mulher aquela
Que paixão a sua
E cai um corpo sangrando
Nas pedras da rua

Mãos carinhosas, generosas
Que não conhecem o rancor
Mãos que o fado compreendem
e entendem sua dor
Mãos que não mentem
Quando sentem
Outras mãos para acarinhar
Mãos que brigam, que castigam
Mas que sabem perdoar

E pouco a pouco o amor regressou
Como lume queimou
Essas bocas febris
Foi um amor que voltou
E a desgraça trocou
Para ser mais feliz
Foi uma luz renascida
Um sonho, uma vida
De novo a surgir
Foi um amor que voltou
Que voltou a sorrir

Há gargalhadas no ar
E o sol a vibrar
Tem gritos de cor
Há alegria na viela
E em cada janela
Renasce uma flor
Veio o perdão e depois
Felizes os dois
Lá vão lado a lado
E digam lá se pode ou não
Falar-se o fado.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Serei feliz, bem feliz

Nestes dias sem glória,
Vão-se as horas
Ficam o vão
E o silêncio
Que só o choro
Vem romper e preencher.

Venha, poesia!
Enxarque-me desse chorinho bom
Traz-me este tempo áureo
De amor e de samba
Que eu também quero ter muito
Sono
De manhã




Chico Buarque - Samba e amor -

domingo, 20 de setembro de 2009

Oração da resignação




Senhor,
Me ajude a ser tolerante
Que é para eu aceitar a ignorância alheia
Me ajude a ser mansa
Que é para eu perdoar as ofensas gratuitas
Me ajude a ser pacífica
Que é para eu ignorar o caos e a crueldade
Permita também, Senhor, que eu perca a consciência depois
Que é para eu poder conviver comigo mesma
Amém.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O amor da sua vida



“That Kind of Woman” (1959)


O amor da sua vida não vem a cavalo. Quer dizer, às vezes até vem sim, mas só quando cavalo é o meio de transporte popular nas redondezas. Pode esquecer o alazão, o porte de príncipe e todo o resto.
O amor da sua vida geralmente não vem com a cara do Brad Pitt, a inteligência e perspicácia do Lumet, o humor do Veríssimo, nem a poesia do Pessoa. Amor da sua vida que se preze não tem tempo para ser tudo isso. Basta senso de humor para superar as adversidades e vamos que vamos. Dê-se por satisfeita, oras.
O amor da sua vida não abre a porta do restaurante a vida inteira, nem elogia a sua roupa da moda ou seu novo corte de cabelo. Não que o amor da sua vida seja um grosseirão, não. É que detalhes tão pequenos de vocês dois só seriam coisas muito grandes para esquecer se vocês estivessem separados. Se o amor da sua vida reparar que você está diferente, por exemplo, já é motivo para comemoração. Para quê forçar a barra?
O amor da sua vida não discute a relação. O amor da sua vida tem horror em discutir a relação. Aliás, o amor da sua vida não entende porque a relação tem que ser discutida. Discussão é sinônimo de briga. E briga é coisa que amor da sua vida evita. Sabe aquela frase “Faça amor, não faça guerra”? Com certeza foi o amor da vida de alguém quem disse isso na hora de discutir a relação.
O amor da sua vida não é necessariamente bom partido. Aliás, se ele for filiado a algum partido já é bom sinal. Sinal de que o amor da sua vida é engajado em alguma coisa além de futebol, cerveja e churrasco. O que não quer dizer que a sua mãe não vá jogar na sua cara para sempre que o amor da sua vida não era bom partido. Mas é que o amor da vida dela também não era. Com todo o respeito. Mãe que é mãe acha defeito até no amor da sua vida.
O amor da sua vida não vem com garantia, embora apresente vários defeitos de fábrica. Mas afinal de contas, você também não é nenhuma Sophia Loren da década de 60, e é cheia de manias que, convenhamos, o amor da sua vida até finge não ver. É que o amor da sua vida não ficou sonhando com princesa de conto de fada nem com mocinha de novela das seis a vida toda. O grande amor da sua vida sabe muito bem quem você é te ama assim mesmo. Senão, não seria o amor da sua vida.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

hora de voltar




Juan atravessou o estacionamento a passos largos. Era a primeira vez que recorria ao ato desesperado de juntar-se ao grupo de mexicanos que diariamente encontrava-se nas imediações daquela grande loja de materiais de construção na frágil esperança de conseguir um emprego por um dia ou mesmo por algumas horas.
Embora aparentasse displicência no jeito de andar, sua revolta íntima não escaparia a um bom observador. Só ele sabia quantos sacrifícios havia feito desde o dia em que deixara Guadalajara até aquele exato momento. Tudo em vão.
__Juan! Juan! Ya está. Ven aquí.
Tarde demais para voltar atrás. Emílio, seu amigo de travessia, chamava-o para junto do grupo reunido a uma certa distância. Ele certamente faria alguma piada a respeito de sua presença ali. Juan entenderia. Muitas vezes gabara-se de sua educação e posição em sua cidade natal. Repetira inúmeras vezes que se pagara um coiote para atravessar a fronteira o fizera tão somente para se aventurar pela América onde, certamente, encontraria trabalho fácil. Seu plano era simples: trabalhar e voltar ao México dentro de um ano com os bolsos lotados de dólares para começar a vida.
Quatro anos e meio depois, lá estava Juan: sem dinheiro, sem trabalho, sem documento, sem previsão de quando voltar. Descobrira rapidamente que de nada lhe valia seu diploma de Engenheiro Civil pela Universidade Jesuíta de Guadalajara. Ali ele não era ninguém. Ali era apenas mexicano; um imigrante de algum país de língua espanhola; uma mera estatística.
Fazia muito frio naquela manhã e assim que se juntou aos homens os quais, vestindo casacos, luvas e toucas, conversavam animadamente entre si, recebeu de Emílio um copo de papel com café fresco. Trocou poucas palavras com alguns deles e limitou-se a escutar o que diziam. Causava-lhe grande desconforto aquela situação. Talvez porque finalmente entendera o quão erroneamente havia alimentado a ilusão de possuir uma certa vantagem em relação àqueles homens rudes e simples. Desde sua chegada aos Estados Unidos ele próprio fora vítima do mesmo vilão que separa os homens de carne e osso dos demais: o sentimento de superioridade. Ele, que havia aprendido inglês em cursos particulares, pagos com sacrifício pelo pai professor, percebeu, para seu espanto, que sua fisionomia e sotaque fechariam todas as portas diante de si naquele país, e que sua inteligência, conhecimento ou habilidades pouco interessariam aos empregadores. Relembrou alguns de seus trabalhos com pesar. Jamais fora tratado com respeito e sequer fora capaz de juntar dinheiro. Muitas vezes desejou voltar ao seu país. Mas o orgulho falara mais alto. Como voltar de mãos abanando depois de tantas promessas?
Ao avistarem a primeira grande “pick up”, alguns dos homens ensaiaram aproximação. Nada. Esse ritual se repetiu algumas vezes antes do almoço sem sucesso. Enquanto dividia seu sanduíche com Juan, Emílio contava a todos em detalhe seu acidente de trânsito que quase o levara a ser descoberto pela imigração semanas atrás. Juan a tudo ouvia sem interesse. Observava os calos das mãos e pensava na ironia daquela hora. Sonhara um dia projetar pontes e edifícios, no entanto, tudo que desejava agora era conseguir um emprego de pedreiro por um dia que garantisse alimento para o mês. O que diriam seus pais se o vissem assim?
Conhecera uma americana há uns dois anos atrás disposta a casar no papel mediante certa quantia da qual ele não dispunha na época. Chegara a acreditar ser esta sua salvação. O casamento de fachada possibilitaria documentação legal, pensara. Mas há muito resolvera desistir de tal intento. O processo, além de lento e custoso, não era garantido.
Súbito, dois homens altos se aproximaram do grupo que, desconfiado, procurou se dispersar. O mais jovem deles tratou de explicar que precisavam de homens fortes para um trabalho pesado. Corte de madeira. Ansiosos, muitos deles, entre os quais encontrava-se Emílio, apressaram-se em se apresentar para o trabalho que surgia milagrosamente no meio do dia. Juan ensaiou algumas palavras, mas os dois homens rapidamente escolheram dez do grupo que os acompanharam em duas mini-vans sem que sua pessoa fosse sequer notada. Resignado, acendeu seu último cigarro e voltou para o quarto que alugava perto dali.
Semanas mais tarde, ainda sem notícias de Emílio e os outros compatriotas, Juan buscava anúncios nos jornais locais quando fora tragado por imensa onda de pavor ao ler uma pequena nota a respeito de dez homens não identificados encontrados mortos, todos baleados na nuca, em área remota destinada a reflorestamento. O jornal mencionava vagamente a origem hispânica dos dez homens e a “dificuldade” da polícia em iniciar as investigações. Um suor frio escorreu pela testa cansada de Juan.
Era hora de voltar para casa.




Despedida - Roberto Carlos

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Defina “tempo”



Tela:

“Asas” - SUZART
(artsuzart.blogspot.com)




Correndo contra a ampola da vida

Eu sigo e procuro a saída do labirinto

Queria ser Ícaro e voar daqui

Sem medo

Só sonhos

Em minhas asas

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Spinning

Girando girando
A vida girou
Diante dos olhos
Girou girou
As meninas
E seus sorrisos
Girando Girando
No peito
O coração
Girou girou
A verdade e
A consequência
Brincando e girando
O pavor e o clamor
Girando girando
O cheiro de chuva
O abismo e a janela
Girando girando
Tudo
Parou.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Cor-de-rosa


[Trecho]
Segundos após o soar do sino da saída, os corredores da escola foram completamente tomados pelas crianças sadias que corriam felizes e barulhentas ao encontro dos pais que já as aguardavam nos portões.
Luiza estava mais ansiosa que o normal naquela tarde e isso era possível perceber no seu gesto nervoso de chacoalhar as chaves do carro. De onde estava podia observar os grupos de mães que conversavam entre si, muito animadas, com seus belos cabelos escovados, suas roupas de grifes famosas, suas bolsas caras, conversando sobre suas vidas interessantes, seus problemas água-com-açúcar, seus esposos bem sucedidos e seus filhos hiperativos. Ela também já desejara aquela redoma de vidro, aquela peneira tapando o sol. Admitia sem vergonha que sonhara secretamente com aquela vida clichê e cor-de-rosa, a qual ignorava o sofrimento alheio, que fingia desconhecer as dores que assolam o resto da humanidade, os problemas sociais, o caos urbano e a política, para se dedicar exclusivamente ao marido e aos filhos. Também ela sonhara com a vida dos romances para moças,com as juras de amor, com o casamento perfeito, os jantares à luz de vela, o amor que dura a vida inteira.
Arriscaria dizer que, caso não tivesse sido tragada pela realidade há seis anos atrás, talvez até fizesse agora parte daquele grupo de jovens senhoras risonhas que evidentemente interpretava de forma elegante seu papel na sociedade. Riu de seu próprio sarcasmo e aprumou-se, voltando sua atenção para a porta da escola. Juliana não tardaria a aparecer.
Reconheceu então a figura da filha tão caprichosamente penteada, segurando a mão de uma amiguinha com quem conversava alegre, enquanto, ao contrário das outras crianças, caminhava calmamente em direção ao pátio. Ao vê-la, Juliana despediu-se da amiga com um abraço e só então precipitou-se a correr em sua direção.
Ela havia esperado por aquele abraço de criança durante todo o casamento. Planejara tudo como era de seu costume: escolheu nomes, calculou seus dias férteis e até a data aproximada do nascimento do bebê que haveria de coroar seu feliz matrimônio. Preparou seu próprio chá de bebê, decorou o quartinho com amor e requinte e escolheu com carinho cada peça do enxoval. Juliana fora muito esperada. O que veio depois dela não.
Perguntou-lhe como havia sido seu dia e, levando-a nos braços, ouviu com atenção cada detalhe do seu relatório infantil, beijando-lhe as faces rosadas entre uma história e outra até alcançarem o carro. Era sexta-feira, e Juliana passaria o sábado com o pai, como o combinado. André, apesar de tudo, estava presente na vida da filha.
Antes de irem para casa, deram um pulo na farmácia do bairro. Precisava da cura para sua ansiedade e teria o sábado todo para tratá-la. Além disso, queria saber a resposta antes de seu rápido encontro com o ex-marido.
Já na entrada do estabelecimento, Luiza percebeu alguns olhares curiosos, com os quais há muito se habituara. Ignorou-os como sempre e ainda segurando a mãozinha da filha interpelou o farmacêutico sem constrangimento quanto aos testes de gravidez. Pousou os olhos num dos kits por longo tempo, perguntando-se como deixara aquilo acontecer. No fundo, sabia que não necessitava daquele teste. Tinha absoluta certeza de que carregava um filho de André e isso causava-lhe imenso pavor. Passou a mão pelos cabelos de Juliana e pela primeira vez teve medo.
Por fim decidiu levar o teste e enquanto pagava por ele ouviu um riso solto de criança.
__ Olha, mamãe – disse divertido um garoto, apontando para Juliana. Que menina engraçada.
__ Não ria, meu filho. – respondeu a mãe. Não vê que a menina é doente?
__ Ela não é doente. – replicou Luiza com voz firme. Ela nasceu com Síndrome de Down.
E saiu da farmácia com Juliana sem olhar para trás.


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quarta-feira, 27 de maio de 2009

Sem manual




Os dias passam numa velocidade incrível, mas a gente nem nota. A gente não vê porque as responsabilidades crescem, assim como as tarefas diárias, enquanto o tempo parece diminuir.
Hoje, por alguns minutos preciosos dentro da minha corrida e – nas últimas semanas – pesada rotina, eu me dei conta do absurdo que a vida se torna quando você não percebe que, bem debaixo do seu nariz, o mundo está a girar (e… pior!) independente da sua vontade.
No meio do meu stress e caos mental, eu vi uma luz que, embora tenha durado pouco, me fez notar a patética figura que me tornei. Eu vi que as meninas cresceram e crescem, aprendem, desenvolvendo seus cérebros em formação, suas personalidades, suas características físicas. Eu vi que envelheci. Eu vi que apesar da dedicação em cumprir as responsabilidades diárias, eu estava deixando de lado a parte que mais interessa – o motivo pelo qual desejamos ter filhos: (tempo) para amar e sermos amados.

Beijei muito e me deixei ser beijada, pisoteada, penteada, babada (!), abraçada… Senti que um amor maior que a vida tomava conta da minha sala na forma de duas menininhas.

Mas infelizmente o meu cérebro doente já ficou imaginando que horas eram, quem iria tomar banho primeiro, a que horas jantariam, as notas das minhas turmas a serem lançadas e outras coisas sem a menor IMPORTÂNCIA. E mais uma vez eu voltava para a matrix.

Mais tarde, exausta, atirada no sofá, admito envergonhada que senti uma pena muito grande de mim mesma, sentimento muito pobre e feio, mas inevitável às vezes. Senti uma vontade enrome de gritar e dizer que não é justo, sair correndo ou me teletransportar para a minha amada terra natal, para o colo da maezinha, para os braços do pai querido que não vejo há 2 anos e que sequer conhece a neta caçula.

Definitivamente a vida não vem com manual.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Interrupção


Depois de rodar por horas sem ter certeza de seu destino, Fernanda foi delicadamente solicitada pelo trocador a se retirar do ônibus, que finalmente chegara ao seu destino final: a rodoviária. Um pouco desnorteada, a moça se levantou com certo esforço e procurou aparentar controle, embora sequer pudesse sentir o chão. Alcançou com bastante dificuldade um orelhão, mas, enquanto procurava um cartão telefônico na bolsa, concluiu que não havia pessoa para quem pudesse ligar naquele momento. Por mais que tentasse, não conseguia concatenar as idéias, tampouco sabia ao certo que sentimento lhe ia na alma. Alma? Pela primeira vez na vida cogitava sua existência e um calafrio lhe percorria a espinha.
Uma dor aguda interrompeu seus pensamentos. Temeu perder os sentidos e acordar num hospital. Esta razão a impulsionou a desistir da ligação impossível e procurar o banheiro. Colheu algumas moedas no bolso da calça jeans e estendeu à mulher na roleta, que lhe apontou os pedaços de papel higiênico pré-cortados e dobrados em pequenos pedaços dispostos de maneira organizada numa prateleira. Notou que uma outra mulher passava pano molhado no chão, cantarolando uma melodia gospel que vinha de um rádio de pilha perto da pia.
Escolheu ao acaso o pedaço de papel higiênico a que tinha direito e concentrou sua atenção na geografia daquele banheiro de rodoviária. Precisava de privacidade e queria estar o mais afastada possível da porta de entrada. Concentrou suas forças neste intento, mas foi bruscamente interrompida por aquela dor que insistia em vingar-se dela.Fernanda precisou apoiar-se na pia para não cair e este gesto chamou a atenção da mulher que cantava.

--- Moça. Você está sangrando.

Sim, ela sangrava muito além daquele sangue, o qual agora pintava de vermelho o chão que a mulher acabara de limpar.
De um salto a mulher segurou Fernanda pelos braços e a arrastou até uma cadeira.

--- Você está machucada? Maria, vá chamar alguém, meu Deus. A moça precisa de uma ambulância.

Fernanda sentia uma enorme vontade de não mais existir. Fechou os olhos e desejou profundamente se esvair junto com aquela hemorragia. Mas abriu-os novamente e, segurando gentilmente a mão daquela desconhecida, pediu-lhe que não chamasse ninguém. A mulher então deitou seus olhos de mãe naquela jovem que sangrava inexplicavelmente no chão de um banheiro público e sentiu uma compaixão maior que si mesma. Perguntou se ela desejava ligar para alguém vir buscá-la, mas Fernanda recusou. A calça jeans estava agora banhada em sangue, mas o sangramento parecia ter diminuído.

--- Raimunda, o que eu faço? – perguntou a mulher da entrada.
--- Feche a porta e vá comprar uma calça para essa moça com o meu dinheiro.

A mulher obedeceu e Fernanda ouviu quando ela saiu, trancando a porta. Munida de uma toalha surrada e sabonete, Raimunda ajudou a moça a dirigir-se a um dos chuveiros, onde ela, sentada numa cadeira de plástico, tomara um rápido e sofrido banho.
Minutos depois Fernanda estava novamente vestida e limpa. Sentada a um canto do banheiro, ao ver aquelas duas mulheres tão bondosas limparem seu sangue espalhado pelo chão, sentiu finalmente que as lágrimas caíam sem cessar e a dor que sentia ia aquém daquela que há pouco ameaçara-lhe a vida.
O banheiro teve as portas reabertas e Fernanda despediu-se de cada uma das duas mulheres com um abraço, prometendo voltar para pagar a ajuda recebida.
Quando ela se foi, Maria viu que a amiga chorava enquanto reajustava a estação de rádio. Ela entendia. Já havia feito aborto antes.


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Minha mãe -Vinicius de Moraes


Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fonte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.

Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão. que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe.


terça-feira, 14 de abril de 2009

Menina Mãe


O livro era “Menina mãe”, de Maria da Glória Cardia de Castro. Eu era uma menina que adorava ler. Salma, a personagem principal, era uma menina de 13 anos que engravidara embora fosse ainda virgem. A leitura fora muito sofrida para mim, que nada conhecia sobre sexo (assim como Salma), e muito menos sobre a frieza, o preconceito e a falta de generosidade alheias.
Entre lágrimas, comentei com minha mãe sobre o livro assim que terminara. Ela, muito acanhada e tímida em relação ao assunto, resolveu ler também e, aparentemente, sentiu as mesma emoções que eu.
Dias depois, lá estávamos, mãe e filha (talvez mais próximas que antes) numa dessas manicures que toda vizinhança tem, ouvindo, enquanto esperávamos, as fofocas, as indiscrições, os comentários – ora maldosos, ora cruéis – todos desprovidos de qualquer preocupação com o direito que cada um tem de ser e fazer o que bem desejar, desde que não prejudique o outro.
Fora minha mãe quem introduzira o assunto. Um rápido comentário sobre o livro “Menina Mãe” e em questões de segundo um exército se formara contra ela, comandado pela própria manicure, que, mãe de uma menina da minha idade (11 anos), deixara bem claro que “filha sua” não lia este tipo de livro. Minha mãe ainda tentou argumentar sobre a importância educativa do livro, mas tudo em vão. Jamais me esqueci da cara de desaprovação da manicure, tampouco da vergonha muda e educada de minha mãe naquela tarde quente.
Alguns anos depois, já na faculdade, testemunhei a realidade irônica que a história de Maria da Glória Cardia de Castro retratava naquela obra: a filha adolescente da manicure engravidara e tivera um filho prematuro – sem “pai” – o qual passara seus primeiros quatro dias de vida no hospital, pois herdara a sífilis da mãe.
Embora seja humana, em nenhum momento a julguei (sequer comentei com minha mãe, que morava então em outra cidade), apenas lembrei-me da sabedoria discreta de minha progenitora, que compreendera que informar é educar e que orientar e alertar é, também, proteger.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Ai, que sono


Aaaaaaaa…. Ai, que sono. Que sono, meu Deus. Que sono é esse que não me deixa? Que peso nos olhos. Não vejo a hora de dormir. O quê? Ainda são três da tarde? Eu tenho tanta coisa para fazer. Nem sei por onde começar. Ai, Orfeu. Agora não dá. Encolhe os braços, vai. Olha que eu tenho duas crianças para cuidar, casa para limpar, jantar para fazer, provas para corrigir… Bem que elas podiam tirar uma soneca agora na mesma hora. Ai, que bom seria. Seria? Seria nada. Eu acabaria aproveitando para arrumar isso aqui, para ajeitar aquilo lá, dobrar isto tudo aqui.
Ai que sono. Que sono. Não. Isso é psicológico. Que sono o quê. Sono é que nem frio. Não tô nem com um nem com outro. Tô bem. Imagine. Ficar com sono em plena luz do dia. Tudo bem que eu não durmo nunca à noite e acordo cedo, mas e daí? Deus não ajuda a quem cedo madruga? Então. Eu sou mais eu. Só que nem bombril. Que coisa triste, olha aí. Já estou até me comparando com bombril. Não, depressão, não. Só preciso de uma boa cama… quer dizer, de uma ducha. Isso. Um bom banho quente. Mas banho quente relaxa, né? Esquece. Vou passar um café. Ah, essa é boa! Até parece que eu aqui passo café. Desde quando esquentar a água no micro-ondas e usar café instantâneo é “passar” café? Xi. Só tem café decafeinado. Assim não dá. Então hoje ninguém vai jantar! As crianças não vão tomar banho, nem vão para cama na hora certa. Os alunos vão ficar sem notas e a casa vai ficar de cabeça para baixo. É isso?
Mãe tinha que ter estepe. Mãe devia ter direito a clone, babá ou dublê. Melhor: toda mãe devia ter o direito de se auto-desligar durante 24 horas, no mínimo, uma vez por mês. E loteria? Só quem é mãe deveria jogar na loteria e ganhar. Ai que sono. Ai que saudade da comindinha da minha mãe. Ai que saudade da minha cama. A gente cuida de todo mundo. Quem é que cuida da gente?
Quando eu me deitar, não vou dormir muito, já sei. O bebê vai acordar chorando. Toma a chupeta. Caiu. Pronto. A menina vai acordar chorando. Foi só pesadelo. Mamãe tá aqui. Pronto. O bebê vai acordar de novo. Toma, a mamadeira tá aqui. Pronto.
Ai que sono. Que sono.

quinta-feira, 19 de março de 2009

A maldade nossa de cada dia

(desenho: Margarida Santos)


Há dias em que a maldade humana consegue verdadeiramente me afetar. Por que será que eu não acho mais graça nas piadas politicamente incorretas? Por que será que o noticiário na tv me choca tanto e às vezes me leva às lágrimas? Por que será que os comentários maldosos ou despreocupados me machucam, mesmo quando não são a mim direcionados?
Será que estou ficando tão velha assim? Será que meu lado mãe não aceita mais o egoismo nosso de cada dia e rejeita completamente a banalização da agressividade gratuita em gestos, ações e palavras?
Por que será que a gente aprende tudo ao contrário? Por que nos ensinam a não levar desaforo para casa e a responder sempre à altura (não seria à “baixeza”?). Por que a gente acha que para ser forte é preciso se auto-afirmar em cima de alguém mais fraco? Por que nos ensinam desde a infância que o “mundo é dos espertos” e que ser bom é ser otário?
Quem nos deu liberdade de ferir a torto e a direito o sentimento alheio utilizando a franqueza como desculpa para tudo?
Quem nos deu o direito de proferir (pseudo)verdades, doa (muito)a quem doer, em nome da nossa liberdade de expressão? Onde é que foi parar a preocupação com a reação e as consequências que nossas palavras causam nos outros?
Fofoca, críticas nada construtivas, julgamento equivocado ou não… Cansei de tudo isso. Cansei dessa falta de respeito, dessa certeza de estar do lado da verdade, dessa maldade grosseira e camuflada. Cansei de moralismo barato e de comentários frívolos.
Por que será que a gente cresce?

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Renascida das cinzas




Era quarta-feira de cinzas. Pela primeira vez desde que vim morar nos EUA, não me ressenti por não ter passado o carnaval na beira da praia, torrando ao sol de Cabo Frio, sobrevivendo de miojo e vinho. Pela primeira vez em anos eu não senti uma pontinha de inveja das amigas que até hoje exibem o corpinho sarado e dourado nas fotos que mostram seu sorriso ao lado de outros amigos em algum lugar paradisíaco no qual passaram o feriado prolongado, desejado, esperado e planejado o ano inteiro. Pela primeira vez eu não havia passado os cinco dias de carnaval maldizendo o frio de Connecticut, a neve, o trabalho que não tem folga em fevereiro ou a pele ligeiramente amarelada debaixo do suéter. Tampouco tive tempo de vasculhar a memória e ressuscitar os “melhores momentos” dos carnavais da minha vida, os amores passageiros, os porres, as decepções, as aventuras, as praias. Também esqueci das músicas marcantes, dos poemas, melodias e cheiros daquela época, que agora parece tão remota.


Só me lembrava de que era quarta-feira de cinzas e de que amanhecera mais um dia no hospital onde minha filhinha de 2 anos e meio estivera internada desde sábado de carnaval por conta de um vírus que a deixou, entre outras coisas, desidratada. O corpinho frágil deitado no bercinho gelado do quarto parecia cada dia mais fraco. Levantei-me como que apoiada em algo ou alguém que não via, mas pressentia estar ali. Aproximei-me dela e pude perceber que seu peito já não mais arfava, a respiração estava calma. Seus lábios voltavam a ter cor e já não estavam mais rachados. Embora tivesse fundas olheiras, seu rosto não estava mais inchado. Sussurrei-lhe com doçura, com uma certeza que vinha de dentro do peito – não dos médicos – e que desejava sair no grito: “Hoje vamos para casa, meu amor.”
Aproveitando que ela dormia, decidi tomar meu banho. De dentro da bolsa que trouxera para o hospital, tirei o meu suéter rosa. O suéter que comprei para ir a uma festa a qual jamais compareci. O suéter rosa, de gola vê, com delicados detalhes em paetê. Era quarta-feira de cinzas, e eu decidi que vestiria aqueles paetês, e aquela cor vibrante. Decidi que tomaria meu banho e que, cheirando a sabonete, daria bom dia a minha filhinha com um sorriso. Eu tinha certeza que a levaria para casa naquele dia. Nenhum outro.
Em casa, um marido exausto e um bebê de sete meses doentinho nos esperavam. Eles também precisavam de mim e eu deles. Sim. Iríamos, os paetês, a filhinha e eu, ao encontro do anjinho e do papai.
Durante a manha toda, minha filha sorriu. Não vomitou, bebeu líquidos e fez xixi. Ensaiou umas dentadas na comida sem-sal do hospital e sentou-se no meu colo. Ela também sabia o que os médicos só decidiriam à tarde: ela iria para casa.
Às 4 horas da tarde de quarta-feira, a médica deu-lhe alta. Atravessei os corredores do 7o andar do hospital infantil segurando uma versão esquelética da filhinha amada que dera entrada dias antes naquele quarto que íamos deixando para trás. A cada passo sentia as asas crescerem e se abrirem. Tal qual fênix, eu levantava vôo das cinzas, naquela quarta-feira. Saíra ferida, mas vitoriosa: rosa, paetês e esperança no peito, e carregando meu maior tesouro nos braços.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Sofrer por antecipação



[...] Um indivíduo que apenas detectasse estímulos e respondesse a eles viveria eternamente no presente

Dizem os livros didáticos que o sistema nervoso serve para "detectar estímulos e responder a eles".

Pode ser -mas isso até amebas e bactérias fazem, e com uma célula só. Um indivíduo que apenas detectasse estímulos e respondesse a eles, ainda que de forma coordenada e organizada, viveria eternamente no presente, incapaz de enxergar para frente ou para trás no tempo, e não teria a menor capacidade de reviver experiências do passado, fazer planos para o futuro -nem de sofrer por antecipação.

Suzana Herculano-Houzel (neurocientista, professora da UFRJ e autora do livro "Fique de Bem com o Seu Cérebro" (ed. Sextante) e do site "O Cérebro Nosso de Cada Dia")


Cheguei recentemente à conclusão de que o maior dos males deve mesmo ser o “sofrer por antecipação”. Arrisco até a dizer que é mais sofrido do que o sofrer por amor. Afinal, não será a antecipação do amor não correspondido a maior causa deste último?
Não sei. Mas sei que eu sofro desse mal e acredito que a maioria das pessoas também. Criança, por exemplo. Criança sofre por antecipação. “Mamãe. Amanhã tem escola?”, “Claro que tem, né?” . “Mas e se amanhã chover?” “Ué, se chover, leva guarda-chuva.”. “E se o despertador não tocar?” . “O meu relógio biológico me acorda.”. “E se eu acordar doente?”, “Eu te dou aspirina”. “E se...”, “Escuta, o que tem amanhã demais?”. “Tem que amanhã é segunda-feira.”. A dor do domingo, inevitavelmente seguido pela segunda, é dura até para quem não cresceu ainda.
Quem é que, nos tempos de criança, não antecipava as férias na casa da avó, ou em algum lugar bacana, longe de casa, cheirando a bolo assado ou coisa do gênero, sonhando em dormir até mais tarde e passar longe dos cadernos? Pois eu, sim. E sofria de dar dó.
Na adolescência, então... Quanto sofrimento gerado por antecipação. Quanta cobrança destruindo a nossa auto-estima. “Será que vão gostar de mim na escola nova?”. “E se os professores implicarem comigo?”Será que aquele menino vai sentar do meu lado?” “E se ele notar que eu tenho espinha?” “E se ele rir dos meus óculos?” . “Ai, meu Deus, tomara que ele não sente perto de mim, não...”. “Será que ele beija bem?”
Tá. Nem todo mundo passa por isso. Mas eu passei e passo até hoje. Antecipo cada detalhe de cada plano traçado. Desde o que vou preparar para o jantar (“Será que a menininha vai comer isso?” “E se depois de todo o trabalho ela não gostar?”. “Será que o arroz vai ficar bom?”) ao que vou preparar para a aula (“Será que vão gostar deste texto?” “E se bocejarem?” “E se eu ficar muda e esquecer tudo?”). Nem sei se menciono o sofrimento antecipando viagens de lazer ou trabalho... Melhor deixar para outra vez, pois já estou antecipando o leitor lendo e se entediando com tantos “serás” e “ses”.
“Será que vou agradar” e “Será que isso vai dar certo?” são, provavelmente perguntas tão relevantes quanto “De onde viemos?” e “Para onde vamos?”, e consomem a humanidade na mesma proporção.
Será?

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Eu queria


Eu queria ter freado, mas não deu tempo. Eu queria ter dito que a culpa não foi minha, mas era. Eu queria ter saído do carro gritando ofensas para o outro motorista, mas não tinha o direito. Eu queria ter ligado para o esposo dizendo que um maluco qualquer havia entrado no meu caminho, mas não podia. Eu queria dizer que não é verdade que mulher no volante é perigo constante, mas ninguém acreditaria. Eu queria jurar que não fiz por querer, que estava distraída, mas sabia que não era verdade. Eu queria pisar no acelerador e fugir da cena, mas não adiantaria. Eu queria pedir para que não ligassem para a polícia, mas não me ouviriam. Eu queria explicar ao policial que eu era cidadã honesta, mas ele riria irônico. Eu queria chorar, espernear, xingar e gritar. Eu queria ter dito que não, que meu bebê não estava no carro comigo… mas estava.
Ao invés disso, eu agradeci.
Porque eu quis muito vê-la sã e salva e vi. Eu quis que todos saíssemos ilesos e saímos. Eu quis receber conforto e recebi.
Mas nada muda o fato de que eu queria ter dito que sou mãe zelosa e responsável. Eu queria ter esclarecido que estava indo rumo a uma reunião de pais, os quais amam e cuidam de sua crias. Eu queria que soubessem que naquela manhã eu mesma havia evitado outros acidentes ocasionados por outros. Eu queria que alguém entendesse que até quando não tem ninguém olhando eu dou a maldita seta! Eu queria ter deixado claro que deixei até de beber socialmente depois que engravidei e tive filhos. Eu queria fazer saber que nunca avanço sinal fechado, nem busino impaciente para ninguém; que dou passagem e agradeço quando me dão; que sou cortês e calma; que sou atenciosa e preocupada. Eu queria poder rir de tudo isso, mas ainda não dá.
Eu até nem queria ter escrito esta crônica, mas ela aconteceu.

quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Mocinhos e Bandidos


Toda vez que vasculho a memória em busca de porquês, esbarro em algum professor. Se é verdade que toda criança fantasia heróis e mocinhos, os meus foram os professores que tive ao longo da vida. Por isto este tema insistente em minha vida. Não tinha mesmo outro jeito: eu quis e escolhi ser um deles. Não foi por acaso.
Queria ser tão querida e amiga quanto o Nicolau, tão adorada e ao mesmo tempo tão temida quanto Alice, tão engraçada quanto… - vários deles -, tão enigmática e carismática quanto Jatobá, etc, etc… Queria ser a mocinha.
De uns tempos para cá venho pensando nos “bandidos”. Afinal, todo mundo, em alguma época da vida, ou várias, também dá de cara com um professor carrasco, daqueles que se assemelham ao “tutu marambá” em cima do telhado. Atormentam a vida e até o sono da gente. Pô, implicam com tudo! Nada está bom para eles. Suas aulas são sessões de tortura. Parece até que a gente está de castigo. E as provas? Só colando. E olha que se colar eles sabem! Professor bandido sente cheiro de trapaça de longe.
Perambulei pelo velho oeste desta memória e me lembrei de um dos maiores vilões do meu passado de estudante dedicada. Ele era John Wayne. Eu era a Pocahontas. Sempre achei que bang-bang que se preze deveria mostrar o índio americano com o mocinho, não o contrário. Por isso eu era a índia. Inocente e indefesa contra o homem branco.
Mas vou chamá-lo aqui de Jerônimo. Nome de índio, mesmo. Então. Jerônimo inspirava terror porque era ambíguo. Bipolar. Fazia gracinhas aqui e dava alfinetadas ali. Nunca dava para saber se Jerônimo estava brincando ou sendo irônico. Se ríamos de suas piadinhas, ele se zangava. Se não ríssemos, também. Sempre distribuía “foras” a torto e a direito, bastava que lhe dessem chance. Mas se a turma não se manifestasse durante a aula, ele procurava alguém para “Cristo”, e aí o pobre diabo passava o resto do dia sendo motivo de chacota.
Tudo isso bastaria para que eu tivesse pavor de Jerônimo, mas não! Tinha que ser pior, dizia a lei de Murphy. Jerônimo tinha que ser professor de contabilidade! Nem a ciência dele era humana.
Por tudo isso, eu sofria por antecipação ao pensar em suas aulas. Decidi que me sentaria no fundo da sua classe sempre! Assim estaria a salvo do seu olhar acusador.
Certa vez, Jerônimo demorou a entrar pela porta. Os minutos se passavam e ele não aparecia. A turma toda deu largas à satisfação de imaginar que Jerônimo, pela primeira vez, havia faltado. Alguns dançavam a dança da chuva, outros corriam pela sala, em seus alazões, sentindo-se livres. Mas eu não. Eu permanecia sentada, sozinha, encostada na parede do fundo. Eu temia.
Foi quando Jerônimo abriu a porta. Silêncio mortal na sala da 8a série. Seu olhar maligno percorreu a sala inteira e parou no meu.
“Você aí!”, gritou apontando para mim. “Saia da sala!”
Senti um frio percorrer minha espinha de cima abaixo. Senti todos os olhares em cima de mim. Senti as lágrimas brotando. Mas não tive coragem de dizer nada. Como poderia argumentar com o próprio bicho-papão em pessoa? Levantei-me silenciosamente e sai.
Já no corredor, ainda em choque e tremendo mais que vara verde, me dei conta de que, se alguns dos inspetores me visse ali, eu seria mandada para detenção, lugar de todos os índios expulsos da sala de aula no meio do dia. Eu vivia o pior pesadelo da minha vida de mocinha. Era o ápice.
De repente ouvi alguém me chamar. Era o inspetor do corredor. As lágrimas insistiram em cair e eu me deixei levar a um canto. Foi quando ele me explicou que o professor de contabilidade havia me liberado para ir para casa. Eu ia chorar e implorar, mas ele disse que a turma toda ficaria na detenção, menos eu. Como assim? Todos estavam de castigo, menos eu. Por isso ele me mandou sair da sala.
Nunca mais eu acreditei em tutu marambá. Nem em John Wayne. Virei índia guerreira, de arco e flecha.
Alguns poucos anos depois, vi Jerônimo anônimo, na hora do hush, em pé, no mesmo ponto de ônibus que eu. Tive medo que ele me reconhecesse e por isso nada disse. Um ônibus, já lotado, parou de súbito, e, contrariando as leis de gravidade e de impenetrabilidade, Jerônimo saltou na porta de trás, confiante. Vi o ônibus se afastar com a porta aberta, levando Jerônimo dependurado, qual surfista de trem, e senti ímpetos de correr e gritar para que parasse.
Senti as lágrimas brotarem novamente. Então era assim que um professor era tratado no meu país. Jerônimo era o mocinho o tempo inteiro e eu não sabia. Eu não sabia.
Na gaveta das respostas, Jerônimo está lá. Não tinha mesmo outro jeito: eu quis e escolhi ser professora. Não foi por acaso.

sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Que dupla!



Acordei sem ter dormido e encontrei 2009 fresquinho me esperando. Pensei que fosse dar de cara com um bebê mas, para minha surpresa, 2009 parecia mais um adolescente bacana, cheio de ideologias e de estilo. Não me atrevi a começar um diálogo, mas ele se prontificou a me esclarecer que se tratava do meu (só meu) 2009, mas que cabia a mim mesma dividi-lo com quem bem entendesse.

Perguntei, meio sem jeito, se ele havia trazido alguma coisa consigo. Entre um sorriso e outro ele dizia que, como bom ano novo que era, carregava muitas promessas, as quais dependeriam dos meus cuidados e esforços para se concretizarem. Nisso tirou-as uma por uma da manga, depositando-as em minhas mãos. Reconheci algumas e fui apresentada a outras. Fitei 2009 agradecida, mas um pouco temerosa. Ele sentiu meu receio e sugeriu que eu as trouxesse sempre comigo sem, no entanto, preocupar-me demais com elas.

Tomei então coragem e perguntei o que mais ele me reservava. O ano ímpar tratou logo de afirmar que não era lá muito previsível, e que, sendo assim, não poderia me adiantar muita coisa. Mas como consolo, disse que eu poderia tirar o máximo mesmo dele, sem dó. “Assim você me deixa sem-graca, né 2009?”. Ele deu uma risada simpática e jovial e disse que até já sabia do que eu mais precisava: tempo. Eu dei de ombros e respondi que até ano bissexto adivinharia aquela, no que 2009 me reprovou, dizendo que eu precisava ser menos irônica e mais empreendedora. Não tive outra opção a não ser concordar, encabulada.

Pressenti que nossa conversa ia chegando a termo e não soube o que dizer. 2009 então me abraçou otimista e disse que tinha certeza de que eu trataria bem dele. Olhei no relógio. Estava na hora de levantar e jogar os cacos de 2008 fora. Precisava de espaço para organizar tanta promessa e ainda ter fôlego para cuidar do futuro de um ano esperançoso, cujo sucesso além de depender inteiramente de mim, afetaria certamente o 2009 de cada um daqueles que fazem parte da minha vida . Confesso que hesitei, mas que outro jeito? Demo-nos as mãos, meu ano novo e eu. Que dupla!