segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Às sete em ponto



[trecho]
O relógio de parede ainda marcava cinco horas da manhã quando Solange saiu trancando a porta. Desceu rapidamente as escadarias da favela, como se desejasse deixar para trás a visão dos filhos pequenos dormindo amontoados na única cama do barraco e do mais velho dormindo no sofá. A neblina da manhã cobria a cidade de São Sebastião, que, lá embaixo, parecia ainda não ter acordado.
Eram todos homens. Os filhos. Solange repetia sempre este pensamento quando o futuro incerto deles a atormentava como agora. O seu único consolo de mãe desamparada era saber que não menstruariam. Era acreditar que enquanto homens não seriam forçados a sentir vergonha e a quase se desculpar por ver os próprios seios e as cochas desabrocharem dentro do uniforme escolar. Era a certeza de que não sofreriam o assédio vexativo e inevitável que seu corpo negro de mulher sofria desde cedo. Não engravidariam. Não tomariam surras diárias do parceiro. Não seriam seduzidos depois abandonados com seus rebentos.
Seus medos de mãe-de-filhos-negros eram bem outros. Mas ela os desviava um a um ao sair de casa àquela hora. Àquela hora da manhã ela não se permitia pensar em estatísticas.
O ponto de ônibus já estava lotado de trabalhadores, todos calados. Alguns checavam o celular. Outros olhavam impaciente para estrada, preocupados com o atraso de alguma linha. Um cheirinho de sabonete rompia o silêncio. Antes de se aproximar, notou encabulada que ninguém vestia uniforme como ela. Procurava levar o uniforme na bolsa para vestir no emprego todos os dias, mas acordara bem tarde. Cumprimentou alguns conhecidos procurando levantar os ombros. Evitava-os todos, pois sabiam da sua vida e a olhavam ora com pena, ora com reprovação.
Não achou o passe na carteira. O Zé sempre os surrupiava para trocar, o infeliz. Até pedir o trocador para passar debaixo da roleta na volta para casa ela já tinha feito antes por conta disso. Recorreu discretamente ao dinheiro destinado a comprar o pão dos patrões que ela escondia no sutiã enquanto seu ônibus se aproximava.
Sentou-se atrás de um rapaz de mochila e pensou no Samuca, o mais velho. Menino de ouro. Antes de sair para escola dava café para os irmãos, arrumava e levava os três para a vizinha que Solange pagava para tomar conta. Dona Marcela fazia questão que ela pegasse no batente antes do patrão acordar e ficasse até ele voltar do trabalho, para lhe servir o jantar. Dona Marcela não trabalhava fora. Como Solange tinha os meninos, não podia dormir no trabalho, então era preciso chegar e sair na hora para garantir o emprego.
Sentindo-se um pouco enjoada com o balanço do ônibus, saltou um ponto antes da padaria e resolveu ir andando para tomar um ar. O dia finalmente começava a clarear na Zona Sul.
O cheiro do pão fresco que comprara em seguida, e o qual geralmente dava-lhe prazer, naquele momento provocou-lhe ainda mais náusea e foi-lhe difícil chegar à portaria do prédio. Sebastião, o porteiro do turno da manhã, havia acabado de chegar e saudou Solange com a malícia costumeira e que lhe era tão desagradável. Mas até o sujeitinho percebeu que ela não estava se sentindo bem e, fingindo preocupação, perguntou:

__ Tá passando mal, morena? Senta aqui um pouco... – disse, apontando para a cadeira atrás do balcão.

Solange respondeu com um gesto impaciente e subiu em seguida para o apartamento pela entrada de serviço. Eram quase seis e meia e ela precisava passar o café e pôr a mesa. Fez tudo com o perfeccionismo que lhe era particular. Os patrões sentariam-se à mesa e lhe dariam bom dia como de costume pontualmente às sete horas.
Seis e cinquenta e cinco. Solange não suportou mais. Correu em direção ao banheiro dos fundos e vomitou um líquido claro e gosmento. Não havia jantar ou café da manhã em seu estômago. Sentiu-se muito fraca e um pensamento terrível lhe veio à mente, fazendo seu corpo todo estremecer. Lavou o rosto freneticamente na pia como a espantar aquela inconcebível possibilidade. Desesperada, voltou para a copa no momento em que Dr. Conrado e Dona Marcela apontaram na porta.
Pensou nos meninos. Pensou no Samuca e no barraco com uma cama só. Pensou no maldito do Zé. Passou a mão pelo ventre e foi servir o café.
(Hartford, 7 de junho de 2009)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Interrupção/ Interruption

INTERRUPÇÃO
Carla Silva-Muhammad



Depois de rodar por horas sem ter certeza de seu destino, Fernanda foi delicadamente solicitada pelo trocador a se retirar do ônibus, que finalmente chegara ao seu destino final: a rodoviária. Um pouco desnorteada, a moça se levantou com certo esforço e procurou aparentar controle, embora sequer pudesse sentir o chão. Alcançou com bastante dificuldade um orelhão, mas ao procurar um cartão telefônico na bolsa, concluiu que não havia pessoa para quem pudesse ligar naquele momento. Por mais que tentasse, não conseguia concatenar as ideias, tampouco sabia ao certo que sentimento lhe ia na alma. Alma? Pela primeira vez na vida cogitava sua existência e um calafrio lhe percorria a espinha.
Uma dor aguda interrompeu seus pensamentos. Temeu perder os sentidos e acordar num hospital. Esta razão a impulsionou a desistir da ligação impossível e procurar o banheiro. Colheu algumas moedas no bolso da calça jeans para pagar sua entrada e as estendeu à mulher jovem na roleta, que lhe apontou os pedaços de papel higiênico previamente cortados e dobrados em pequenos pedaços dispostos de maneira organizada numa prateleira. Notou que uma outra mulher passava pano molhado no chão, cantarolando uma melodia gospel que vinha de um rádio de pilha perto da pia.
Escolheu ao acaso o pedaço de papel higiênico a que tinha direito e concentrou sua atenção na geografia daquele banheiro de rodoviária. Precisava de privacidade e queria estar o mais afastada possível da porta de entrada. Concentrou suas forças neste intento, mas foi bruscamente interrompida por aquela dor que insistia em vingar-se dela. Fernanda precisou apoiar-se na pia para não cair e este gesto chamou a atenção da mulher que cantava.
"Moça. Você está sangrando."
De fato, ela sangrava muito além daquele sangue, o qual agora pintava de vermelho o chão que a mulher acabara de limpar.
De um salto a mulher segurou Fernanda pelos braços e a arrastou até uma cadeira.
"Você está machucada! Maria, vá chamar alguém, meu Deus. A moça precisa de uma ambulância."
Fernanda sentia uma enorme vontade de não mais existir. Fechou os olhos e desejou profundamente se esvair junto àquela hemorragia. Mas abriu-os novamente e, segurando gentilmente a mão daquela desconhecida, pediu-lhe que não chamasse ninguém. A mulher então deitou seus olhos de mãe naquela jovem que sangrava inexplicavelmente no chão de um banheiro público e sentiu uma compaixão maior que si mesma. Perguntou se ela desejava ligar para alguém vir buscá-la, mas Fernanda recusou. A calça jeans estava agora banhada em sangue, mas o sangramento parecia ter diminuído.
"Raimunda, o que eu faço?" – perguntou Maria, a mulher mais jovem da entrada.
"Fecha a porta e vai correndo pedir uma calça jeans pra Luana da loja de roupa. Diz que depois eu pago!"
Maria obedeceu e Fernanda ouviu quando ela saiu, trancando a porta. Munida de uma toalha surrada e sabonete, Raimunda ajudou a moça a dirigir-se a um dos chuveiros, onde ela, sentada numa cadeira de plástico, deixou-se tomar um rápido e sofrido banho.
Minutos depois Fernanda estava novamente limpa e vestida. Sentada a um canto do banheiro, ao ver aquelas duas mulheres tão bondosas limparem seu sangue espalhado pelo chão, sentiu finalmente que as lágrimas caíam sem cessar e a dor que sentia ia aquém daquela que há pouco ameaçara-lhe a vida.
O banheiro teve as portas reabertas e Fernanda despediu-se de cada uma das duas mulheres com um abraço sem forcas, prometendo voltar para pagar a ajuda recebida.
Tão logo ela se foi, Maria viu que a amiga chorava enquanto reajustava a estação de rádio. Raimunda entendia. Também já havia feito aborto antes.




ENGLISH TRANSLATION

Interruption
by Carla Silva-Muhammad

After circulating for hours, uncertain of her own fate, Fernanda was kindly asked to vacate the otherwise empty bus, which have reached its final destination: Petrópolis’ old bus station. Disoriented, the young lady struggled to stand up, fighting to compose herself while barely feeling the ground. She managed to reach a payphone, but while searching her purse for a phone card, she realized there was no one to call. As much as she tried, she felt unable to formulate cohesive thoughts or to distinct her feelings. Was she a lost soul? Soul? The contemplation of the very existence of the soul made her tremble. A sharp pain interrupted such unprecedented thought.
Fearing waking up in a hospital’s bed, she dismissed the impossible “call idea” in favor of a new mission: finding the restroom. She paid the young female cashier with the few coins she founded in her pocket and was directed to the toilette paper section of the public restroom, where several small pieces of pink toilette paper were pre-disposed in a certain order. She noticed that an older woman was mopping the floor while singing a gospel song along with the radio, which was near the sink.
Randomly choosing the piece of pink toilette paper she was entitled to, she proceeded to study the geography of that bus station restroom. Privacy was crucial at that very moment, so it was important for her to remain as far as possible of the entrance. But while attempting to focus in such project, she was abruptly interrupted once again by the pain and its inflicting doses of revenge. Fernanda had to lean on the sink to avoid heating the floor, and such commotion drew the attention of the lady mopping the floor.
“Miss, you are bleeding!”
In fact, her bleeding surpassed the tangible and profuse flow of blood now coloring the recent cleaned floor.
With a jump, the woman grabbed Fernanda’s arms and dragged her to a chair.
“You are hurt!” - she screamed in shock. “Maria, go call someone! Oh God. She needs an ambulance.”
All Fernanda could feel was a deep desire to no longer be. She closed her eyes, wishing to ooze herself away with the hemorrhage. But instead, she calmly held the hands of the woman and asked her to call no one. The woman laid her mother’s eyes on the young girl copiously and inexplicably bleeding on the floor of a public restroom and all her being emanated compassion. Fernanda refused to have anyone come to get her. Her jeans were now bathed in blood, but somehow the bleeding seemed to have stopped.
“Raimunda, what should I do?”- inquired Maria, the younger cashier.
“Close the doors and run to Luana’s store. Ask her for a new pair of jeans and tell her I will paid for it later.”
Fernanda heard Maria locking the doors after herself.
Armed with a worn towel and soap, Raimunda helped the girl reach one of the showers. Seated in a plastic chair, Fernanda took a quick and painful shower.
Clean and dressed, Fernanda later saw the two strangers cleaning the floor covered with her blood and could no longer contain the tears that nearly suffocated her. Her pain was now of a different kind, beyond the one that had just threatened her so-call life.

The doors of the restroom were reopened. Fernanda said goodbye with a weak hug, promising the women to return and pay her debt. As soon as she left, Maria realized her friend was quietly crying while fixing the radio. Raimunda knew. She herself has had an abortion before.

domingo, 4 de setembro de 2011

A resposta (texto antigo... bateu saudade)





Quando criança, em qualquer momento em que uma dúvida me assaltasse, por mais inibida que fosse, eu procurava questionar os adultos e me satisfazia com a resposta dada. No meu mundinho os adultos tinham as respostas para todas as perguntas. Gente grande sabe tudo. Não aceitava, apenas acreditava. Bons tempos aqueles! Pergunta alguma ficava sem resposta. Perguntou: batata! Tinham a resposta pronta para mim. Por mais chocante que a pergunta soasse.
Aliás, as respostas que mais me marcaram foram aquelas que fizeram meus pais (meus adultos preferidos) suarem a camisa para encontrar. Como à que meu pai me deu certa vez quando, ainda bem pequena, parada ao seu lado num ponto de ônibus em Petrópolis, li uma palavra rabiscada no muro e, como a desconhecia, perguntei bem alto ao meu desconcertado progenitor:
⎯ Papai, o que é bo-ceta?
No que o mui rápido e eficaz pai, observado de perto por todos os curiosos no ponto de  ônibus, respondeu quase num sussurro:
⎯ É um palavrão, minha filha.
O chato é que na adolescência o meu oráculo se desfez. Os adultos perderam a credibilidade para mim. Decidi que não valia a pena sequer perguntar, porque a resposta certamente não seria de cunho científico ou filosófico, mas arbitrário:
⎯ Por que eu não posso tomar banho depois de comer, oras?
⎯ Porque faz mal.
⎯ Faz mal por quê?
⎯ Por que sim!
Mais tarde a faculdade ampliou meus horizontes e eu descobri um novo oráculo: a biblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ. Ah… filosofia, letras e arte! Respostas para perguntas as quais eu sequer havia elaborado. Um mundo novo se abriu: subitamente as questões eram tão importantes quanto suas respostas (estas últimas, aliás, não precisavam mais ter caráter científico, bastasse fossem opções do que poderia vir a ser uma conclusão aberta à discussão). Um deleite!
Até que um dia eu me descobri adulta e sem tempo para perguntas ou coragem para encontrar as respostas. Responsabilidades, contas para pagar, e uma montanha de questões a resolver. Muitas vezes era preciso ignorar a pergunta que brotava. Quem lá tinha tempo para isso? A esquerda que indagasse os porquês ao governo ora essa!
Foi quando eu descobri meu terceiro oráculo: a banda larga! Agora sim, bastava digitar algumas palavras que o Google vinha imediatamente com centenas e milhares de lugares e respostas independentemente do cunho da questão. Tanta informação! Da noite para o dia eu viarava mecânica, doutora e astronauta. Não necessariamente nessa ordem. As respostas eram tantas que me embriagavam. Claro que dava um trabalho danado coletá-las, dividi-las por categorias e decidir qual delas era a mais verídica e/ou satisfatória. Afinal, era preciso, como qualquer outra pesquisa, colecionar e questionar as respostas (de acordo com o grau de credibilidade da fonte). Um trabalho quase científico.
Mas veja bem, meu caro amigo, que coisa doida é a vida. Não é que de lá para cá eu virei mãe (gente grande) e, sem aviso prévio, fui nomeada o oráculo de alguém? Alguém de uns três anos de idade. Ah! Quantas perguntas a serem respondidas. Quantas respostas a serem “re-perguntadas”. Sim, porque essa minha filhinha e suas perguntas incansáveis não se satisfaz sempre com minhas singelas respostas:
⎯ A câmera não vai funcionar.
⎯ Why?
⎯ Porque está sem bateria.
⎯ Why?
⎯ Porque mamãe esqueceu de carregar.
⎯ Why?
⎯ Porque eu tinha muitas coisas para fazer...
⎯ Why?
E assim vai… (agora eu sei porque algumas respostas devem ser simplesmente arbitrárias, caramba!)
Entretanto o mais interessante é perceber que a menininha ensaia suas próprias respostas. Um belo dia, percebendo que a lua não estava mais cheia, ela mais que depressa apontou:
⎯ Look, mommy! the moon is broken!
E quando eu já ensaiava uma resposta para a pergunta que eu achava que se seguiria, ela arrematou com a explicação que ela traz na ponta da língua sempre que se encontra em apuros:
⎯ It wasn't me! It was Tainá (a irmazinha de 1 aninho que dormia no seu assento de bebê)!!!
Eu não encontraria melhor resposta.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Te perdoo

Não vês que te perdoo?
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Tu vês o dia nublado
E tua vista se acinzenta
Teu café amarga
As horas do teu dia se arrastam
Até que teu vazio se torne mais presente
 insuportável
E te arrebentes o peito
Rindo-se da tua mortalidade tola
Desconheces o homem que te tornastes
Maldizes teus conceitos
E admites que perdestes a aposta da vida
Sentes que já não podes mais
Mas no fim do dia voltas para casa
Assistes o jornal
te contentas com o sono
e te permites apagar por algumas horas
talvez dias
tua realização, até que ela volte a te assombrar
num outro dia
em que tu tornarás a ver céu cinzento
no mesmo céu em que olho
e só vejo chuva
ardo de desejo
encharco-me em mortalidade
tola e solta,
até transbordar de prazer.
Conheço cada uma das mulheres que me tornei
Rio zombeteira das minhas certezas efêmeras
E percebo que posso mais
E que o concreto não me contenta.
No fim do dia volto para casa
Assisto o jornal
e deixo o sono me levar
certa de que continuo a me encontrar
e me envolver e enlouquecer
sem ti.