quarta-feira, 27 de maio de 2009

Sem manual




Os dias passam numa velocidade incrível, mas a gente nem nota. A gente não vê porque as responsabilidades crescem, assim como as tarefas diárias, enquanto o tempo parece diminuir.
Hoje, por alguns minutos preciosos dentro da minha corrida e – nas últimas semanas – pesada rotina, eu me dei conta do absurdo que a vida se torna quando você não percebe que, bem debaixo do seu nariz, o mundo está a girar (e… pior!) independente da sua vontade.
No meio do meu stress e caos mental, eu vi uma luz que, embora tenha durado pouco, me fez notar a patética figura que me tornei. Eu vi que as meninas cresceram e crescem, aprendem, desenvolvendo seus cérebros em formação, suas personalidades, suas características físicas. Eu vi que envelheci. Eu vi que apesar da dedicação em cumprir as responsabilidades diárias, eu estava deixando de lado a parte que mais interessa – o motivo pelo qual desejamos ter filhos: (tempo) para amar e sermos amados.

Beijei muito e me deixei ser beijada, pisoteada, penteada, babada (!), abraçada… Senti que um amor maior que a vida tomava conta da minha sala na forma de duas menininhas.

Mas infelizmente o meu cérebro doente já ficou imaginando que horas eram, quem iria tomar banho primeiro, a que horas jantariam, as notas das minhas turmas a serem lançadas e outras coisas sem a menor IMPORTÂNCIA. E mais uma vez eu voltava para a matrix.

Mais tarde, exausta, atirada no sofá, admito envergonhada que senti uma pena muito grande de mim mesma, sentimento muito pobre e feio, mas inevitável às vezes. Senti uma vontade enrome de gritar e dizer que não é justo, sair correndo ou me teletransportar para a minha amada terra natal, para o colo da maezinha, para os braços do pai querido que não vejo há 2 anos e que sequer conhece a neta caçula.

Definitivamente a vida não vem com manual.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Interrupção


Depois de rodar por horas sem ter certeza de seu destino, Fernanda foi delicadamente solicitada pelo trocador a se retirar do ônibus, que finalmente chegara ao seu destino final: a rodoviária. Um pouco desnorteada, a moça se levantou com certo esforço e procurou aparentar controle, embora sequer pudesse sentir o chão. Alcançou com bastante dificuldade um orelhão, mas, enquanto procurava um cartão telefônico na bolsa, concluiu que não havia pessoa para quem pudesse ligar naquele momento. Por mais que tentasse, não conseguia concatenar as idéias, tampouco sabia ao certo que sentimento lhe ia na alma. Alma? Pela primeira vez na vida cogitava sua existência e um calafrio lhe percorria a espinha.
Uma dor aguda interrompeu seus pensamentos. Temeu perder os sentidos e acordar num hospital. Esta razão a impulsionou a desistir da ligação impossível e procurar o banheiro. Colheu algumas moedas no bolso da calça jeans e estendeu à mulher na roleta, que lhe apontou os pedaços de papel higiênico pré-cortados e dobrados em pequenos pedaços dispostos de maneira organizada numa prateleira. Notou que uma outra mulher passava pano molhado no chão, cantarolando uma melodia gospel que vinha de um rádio de pilha perto da pia.
Escolheu ao acaso o pedaço de papel higiênico a que tinha direito e concentrou sua atenção na geografia daquele banheiro de rodoviária. Precisava de privacidade e queria estar o mais afastada possível da porta de entrada. Concentrou suas forças neste intento, mas foi bruscamente interrompida por aquela dor que insistia em vingar-se dela.Fernanda precisou apoiar-se na pia para não cair e este gesto chamou a atenção da mulher que cantava.

--- Moça. Você está sangrando.

Sim, ela sangrava muito além daquele sangue, o qual agora pintava de vermelho o chão que a mulher acabara de limpar.
De um salto a mulher segurou Fernanda pelos braços e a arrastou até uma cadeira.

--- Você está machucada? Maria, vá chamar alguém, meu Deus. A moça precisa de uma ambulância.

Fernanda sentia uma enorme vontade de não mais existir. Fechou os olhos e desejou profundamente se esvair junto com aquela hemorragia. Mas abriu-os novamente e, segurando gentilmente a mão daquela desconhecida, pediu-lhe que não chamasse ninguém. A mulher então deitou seus olhos de mãe naquela jovem que sangrava inexplicavelmente no chão de um banheiro público e sentiu uma compaixão maior que si mesma. Perguntou se ela desejava ligar para alguém vir buscá-la, mas Fernanda recusou. A calça jeans estava agora banhada em sangue, mas o sangramento parecia ter diminuído.

--- Raimunda, o que eu faço? – perguntou a mulher da entrada.
--- Feche a porta e vá comprar uma calça para essa moça com o meu dinheiro.

A mulher obedeceu e Fernanda ouviu quando ela saiu, trancando a porta. Munida de uma toalha surrada e sabonete, Raimunda ajudou a moça a dirigir-se a um dos chuveiros, onde ela, sentada numa cadeira de plástico, tomara um rápido e sofrido banho.
Minutos depois Fernanda estava novamente vestida e limpa. Sentada a um canto do banheiro, ao ver aquelas duas mulheres tão bondosas limparem seu sangue espalhado pelo chão, sentiu finalmente que as lágrimas caíam sem cessar e a dor que sentia ia aquém daquela que há pouco ameaçara-lhe a vida.
O banheiro teve as portas reabertas e Fernanda despediu-se de cada uma das duas mulheres com um abraço, prometendo voltar para pagar a ajuda recebida.
Quando ela se foi, Maria viu que a amiga chorava enquanto reajustava a estação de rádio. Ela entendia. Já havia feito aborto antes.


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Minha mãe -Vinicius de Moraes


Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fonte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.

Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão. que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe.