segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Mudanças


Poema de mudança

" Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem (se algum houve), as saudades."

Luís de Camões, Lírica



Sempre que um ano se acaba, além da rápida conclusão a que chego após rever os fatos e acontecimentos pessoais daquele ano perdido (perdido sim, pois a mais significativa conclusão é sempre a de que o pretérito foi perfeito, e de que os segundos, dias e os anos não voltam mais), paro e penso se sou mesmo quem eu quero ser e se faço o que gosto de fazer. Mas a resposta é sempre negativa.
Não que isso me deixe arrancando os cabelos, tampouco depressiva. Simplesmente procuro analisar quem sou e porquê sou assim e não assado. O que me falta para ser quem eu queria e para fazer o que gostaria.
Após explicar a mim mesma, com a já manjada desculpa, que sou fruto das oportunidades as quais me apareceram e continuam a aparecer ou não; que, por exemplo, nunca tive talento nem coragem suficiente para ser outra coisa diferente do que sou hoje, reconheço velhas e novas falhas e traço algum plano semi-(in)falível do qual me esquecerei antes da metade do ano novo. Pronto. Vou encarar o ano novo cheia das velhas esperanças e expectativas de sempre.
Mas neste final de ano resolvi assumir. Eu acho que gosto um pouco de quem eu sou, sim, mas nunca quis admitir. Talvez porque sonhei outros sonhos ou porque presumi que deveria ser mais ou melhor para os outros. Enfim, analisei friamente e decidi que eu não sou quem desejei ser, mas sou quem sou e estou bem assim. Gosto e às vezes chego até a amar o que faço, embora não seja reconhecida moral ou financeiramente por isto. Tudo bem. O que importa é que acordo diariamente renovada, sem sem sequer haver dormido (é que os bebês de 5 meses ainda não entendem bem a necessidade das 8 horas de sono materno), e que, sem notar ou fazer força, dou tudo de mim nos papéis que exerço: mãe, esposa, professora, filha, amiga etc. É que eu não sei ser diferente. Mas também, por quê o seria?
Assim, afora perjurar comer menos doces e voltar a malhar, prometo que em 2009 vou continuar a ser eu mesma, aprendendo com alguns erros e comentendo tantos outros. Prometo que continuar sendo desse jeito. Enfim: prometo a mim mesma não mudar nada, só deixar que 2009 venha e flua, dando continuidade na corrente da minha minha vida.

terça-feira, 23 de dezembro de 2008

O menino e a guerra

Natal é uma data triste. É quando eu lembro que estou longe da família no Brasil. É quando olho pela janela e vejo neve (coisa que pouco me impressiona e muito me entristece). É quando eu reconheço que fiz pouco ou quase nada para o meu próximo no ano que está prestes a terminar. É quando recordo que as guerras, a miséria, a violência, o descaso com o ser humano e a degradação do planeta não só aumentaram, como parecem intermináveis.
Nessa data eu me lembro que inventaram e depois comercializaram um dia pagão como sendo o do nascimento de um menino que virou mestre e ensinou amor, desapego e pacifismo. Por isso, no Natal eu não tenho memórias boas ou más. Apenas estas tristes lembranças. Apenas uma vaga tristeza, arrependimento e um pouco de culpa. Meu sentimento está mais para o “Poema de Natal” de Vinícius, que para “jingle bells”.
Mas a vida ainda é boa, não? Isso eu lembro quando vejo minhas filhas dormindo. O que ensinar-lhes? O que deixar-lhes? O melhor presente de Natal que posso lhes oferecer é o amor e a paz que aquele menino-mestre ensinou.





John Lennon - Happy Christmas (War Is Over)



So this is Christmas
And what have you done
Another year over
And a new one just begun
Ans so this is Christmas
I hope you have fun
The near and the dear one
The old and the young

A very merry Christmas
And a happy New Year
Let's hope it's a good one
Without any fear
And so this is Christmas
For weak and for strong
For rich and the poor ones
The world is so wrong
And so happy Christmas
For black and for white
For yellow and red ones
Let's stop all the fight
A very merry Christmas
And a happy New Year
Let's hope it's a good one
Without any fear
And so this is Christmas
And what have we done
Another year over
And a new one just begun
Ans so this is Christmas
I hope you have fun
The near and the dear one
The old and the young
A very merry Christmas
And a happy New Year
Let's hope it's a good one
Without any fear
War is over over
If you want it
War is over
Now...

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O reencontro



Nas raras vezes em que tenho tempo para limpar esta ou aquela gaveta, organizando ou fingindo organizar a minha infinita e onipotente “papelada”, sempre sou felicitada com alguma surpresa boa. Sabe aquela sensação vitoriosa de encontrar alguma nota de dinheiro - da qual você nem havia dado falta - no bolso da jaqueta guardada e cheirando a naftalina? Pois as minhas descobertas são ainda mais prazerosas. Morando tão longe de uma terra e de uma gente tão queridas, não raro me sinto emocionada, quase às lágrimas mesmo, com os achados da minha montanha de papéis.

Às vezes encontro uma carta ou bilhete no meio das contas para pagar e me sinto tal qual uma princesa resgatada do alto da torre. Noutras basta uma capa de um cd que não ouço há décadas, um cheiro do passado num livro jogado no meio das provas para corrigir(como na música de Adriana Calcanhoto) ou uma foto no meio da bagunça para que eu me esqueça de como a vida da gente é corrida e me transporte para algum lugar agradável na minha memória fotográfica.

Da última vez foi exatamente uma fotografia. Coisa por si só surpreendente, visto que a era digital acabou com o papel. Para ver as fotos a gente precisa ligar o computador. Ninguém mais se importa em “revelar” nada. Lembra desse verbo, “revelar”? “Já revelou as fotos da festa?”, “Ainda não”. “Quantas poses tem no filme?”. “Umas 25, mas quando revelar, devem sair umas 27”. Lembra disso?

Pois é. Mas eu achei uma foto de verdade, um pouco velha e solitária, gritando por mim. Senti-me a princípio surpresa, depois culpada, e, por fim, feliz. A foto não tinha lá muita qualidade. Fora tirada por volta de 2003 com uma máquina daquelas descartável. Mas eu não conseguia colocar os dentes para dentro da boca. Ela me fazia sorrir aquele sorriso bobo, de quem se esqueceu que a vida também é interessante às vezes.

Nela um menino de uns 7 anos, cujo nome desconheço, sorria com o bracinho em volta do meu pescoço. O que me fascinava não era a foto, nem o sorriso simpático de criança ou ainda o meu sorriso jovem que naquela época ainda era moreno jambo. O que me emocionava era a lembrança de como aquele menino esperto havia passado em meu caminho e me tocado com seu cárater.

Num flasback sem música (Sim , porque geralmente os meus têm música), vi –me passeando de mãos dadas com o esposo-mais- brasileiro-que-eu no Largo da Carioca, no Rio, num dia ensolarado. Havíamos andado por Santa Teresa, pois eu lhe mostrava onde passei parte da minha vida, nos tempos de faculdade. O dia quente e as andanças convidavam-nos agora a um bom suco de açaí, o preferido do esposo. Sentados num bar vazio e antigo, sorríamos satisfeitos, na espera do suco perfeito que coroaria o dia mais perfeito ainda. Foi quando um menino de braços finos se aproximou e, muito educadamente, ofereceu suas balas de coco por 25 centavos cada. Perguntamos a ele se gostaria de tomar um suco conosco, no que ele prontamente respondeu que não, pois estava trabalhando. A resposta nos surpreendeu, principalmente, pelo tom responsável que vinha daquela pequena pessoa. Daí o esposo, parte sociólogo, parte fotógrafo, ofereceu comprar uma foto dele, que pediu uma explicação. “Ele tira uma foto tua e te paga um Real por ela”, eu respondi. Ele pensou e pensou, fixando o teto do bar. “Mas você não prefere só comprar quatro balas por um Real?”

Perguntamos, vencidos, se as balas eram boas mesmo, só para ouvi-lo falar e conhecer um pouco mais sobre sua história. Ele disse que eram as melhores balas de coco que ELE havia comido e que era sua mãe quem as fazia. Eu comprei uma para provar e concordei com ele: deliciosa! Ele contou sobre sua mãe e seus irmãos. Disse que estava na escola e revelou o que faria com o dinheiro que sua mãe lhe daria de “comissão” . “Vou comprar um rádio e um fone de ouvido no Natal.”, disse orgulhoso.

Perguntei quanto custaria comprar todas as balas que ele levava, no que o menino inquiriu “Mas por que você que comprar tanta bala?” Eu quis muito responder “Pra te ajudar”, mas pensei bem, e vi que ele não precisava nem queria ajuda.

Quando os sucos chegaram, seus grandes olhos castanhos acompanharam o homem que nos servia e quando este trouxe um copo para o “chorinho” eu insisti: “Mas você não quer nem um pouquinho? Está tanto calor.” Ele fez que não. O esposo fez outra oferta. Ele compraria 12 balas e, em troca do suco, tiraria uma foto do menino. Ficou tudo acertado. Compramos as balas e, depois que tomamos o açaí, tiramos aquela foto que eu segurava agora nas mãos.

Ele agradeceu e se despediu, muito contente com seus 3 reais. E nos ficamos ali, mudos, estáticos, já saudosos daquela figura que nunca mais encontraríamos. Mas no dia em que achei a foto eu o reencontrei, e mais uma vez ele me trouxe sua energia boa, que me valeu muito mais que qualquer nota de papel esquecida no bolso da calça. Não me lembro onde coloquei a sua foto depois disso, mas acho que foi de propósito, só para um dia ser novamente surpreendida por ela.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Elmo e as pessoas


Um dos professores que moldaram a pessoa que sou hoje e de quem guardo uma lembranca muito querida chamava-se Marcel. Não é erro de digitação, não. Marcel, mesmo, não era Marcelo. Lembra da Alice, minha professora que não vinha do país das maravilhas? Então. Marcel também era professor de Português, mas veio antes da Alice. Eu cursava a 5a. série e tinha dez anos.
Além do nome curioso, presença marcante e bom humor, Marcel tinha uma peculiaridade: referia a si mesmo na terceira pessoa. Sempre. Dizia: “Marcel vai fazer isso... Marcel vai fazer aquilo.”
No comeco achava engraçado, presumindo que Marcel fazia aquilo de propósito, de brincadeira. Mas com o tempo precebi que não. Marcel realmente dirigia-se a sua pessoa pelo nome que lhe deram.
Depois de Marcel, encontrei em minha vida poucas pessoas com o mesmo hábito e me perguntava o porquê. Gostavam assim tanto de seus próprios nomes ou havia algo de mais complexo por trás desta atitude? Teriam por acaso elas algum problema de identidade, dupla personalidade ou o quê? Será que todas possuiam baixa estima ou, ao contrário, egos superexcitados que lhes permitiam especial referência?
Foi quando me deparei com um ótimo texto de Moacyr Scliar: “Nós, o pistoleiro, não devemos ter piedade”. Nele, o narrador refere-se a si mesmo na 1a. pessoa do plural! Ainda mais intrigante. Descobri que muitos linguistas estudam este tipo de discurso e alguns o chamam de referenciação. Mas depois de ler, procurar e tentar analisar sozinha, acabei desistindo de entender e admiti que não sabia nada mesmo! No final das contas, não fazia a menor diferença, pois o que interessava é que Marcel, por exemplo, era o que era porque era e pronto!
Muitos anos mais tarde, eu, agora mãe de uma menininha muito curiosa, que tenta entender e diferenciar duas línguas totalmente distintas, enquanto aprende a se comunicar, fui apresentada a um boneco-marionete muito popular nos EUA chamado Elmo. Não é que o tal conversa com as crianças sem jamais usar a 1a pessoa?
Pronto!
E dia desses, chamando a atencão da tal menininha de nome bem brasileiro (tupiniquim mesmo!) na terra do tio Sam (tio de quem?), reparei, surpresa, que havia algo de Marcel em mim:
- Mamãe não gosta quando você faz isso!
E ela disse:
-Mamãe Carla!
Carla é uma boba ou não é?

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Déjà Vu – até quando?


A não-violência absoluta é a ausência absoluta de danos provocados a todo o ser vivo. A não-violência, na sua forma activa, é uma boa disposição para tudo o que vive. É o amor na sua perfeição.
Mahatma Gandhi


“Holocausto nuca mais”, eles disseram. Prometeram. Mas eles não foram capazes de manter a promessa para sempre.
Passou o dia assistindo televisão em vão. Canais locais e da tv a cabo. Nada. Sequer uma única menção ou notícia sobre Darfur.
Enxugou o suor frio que lhe escorria da testa, num misto de desespero e raiva. Até quando o genocídio seria permitido na face da Terra? Como era possível cometer os mesmos erros e ignorar os sinais clássicos? De que valia a união das nações cuja ajuda sempre tardava em chegar?
Em sua memória fotográfica, revia Ruanda e os milhares de corpos de tutsis exterminados por motivos cruéis e tão semelhantes à ideologia nazista de uma raça superior. Num gesto instintivo, pousou os dedos sobre o nariz, medindo-o.
Supsirou fundo. Chorou compulsivamente por alguns minutos.
Bósnia . Tibete. Cambodia. Turquia. Até quando a violação massiva dos direitos humanos se repetiria debaixo dos olhos daqueles que prometeram defendê-los?
Pensou nos indíos Kaiowá Guarani, que aparentemente valiam menos que as cabeças de gado no Mato Grosso do Sul e desligou a tv. Até quando os ganhos econômicos teriam prioridade sobre a vida humana?
Até quando as causas do genocídio seriam desprezadas?

“Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum,” (…)Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.”
(DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS Adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948)

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

CAPÍTULO XXXIII / O PENTEADO


Dom Casmurro - Machado de Assis


(Meu texto favorito de Machado, que posto aqui em homenagem aos 100 anos de sua morte Reparem na maneira singular com que o genial autor retrata o primeiro beijo)


E Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelho. Peguei-lhe dos cabelos, colhi-os todos e entrei a alisá-los com o pente, desde a testa até as últimas pontas, que lhe desciam à cintura. Em pé não dava jeito: não esquecestes que ela era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse.

--Senta aqui, é melhor.

Sentou-se. "Vamos ver o grande cabeleireiro", disse-me rindo. Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tacto aqueles fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Não pedi ao céu que eles fossem tão longos como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitológico. Ainda há pouco, falando dos seus olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfa, digamos somente uma criatura amada, palavra que envolve todas as potências cristãs e pagãs. Enfim acabei as duas tranças. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas Em cima da mesa, um triste pedaço de fita enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um laço, retoquei a obra, alargando aqui, achatando ali, até que exclamei:

--Pronto!

--Estará bom?

--Veja no espelho.

Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ela rosto a rosto, mas trocados, os olhos de uma na linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu.

--Levanta, Capitu!

Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e...

Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até à parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso. atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas...

domingo, 23 de novembro de 2008

Nú artístico

(ilustração: Al Moore, artista Americano da década de 50)

-- Pelada, não!
Renato andava bufando de um lado para o outro na minúscula sala do apartamento na praia do Flamengo. As mãos, suadas, balançavam no ar sem parar enquanto as veias do pescoço saltavam coordenadas com as da testa, que fervia `aquela altura do campeonato. Aliás, antes fosse algum final de campeonato. Antes ver o flamengo perdendo um fla-flu de virada nos acréscimos do segundo tempo bem na decisão da Taça Guanabara do que ouvir aquilo.
-- Olha o coração! – implorava a jovem esposa, entre culpada e ressentida.
Mas Renato não olhava. Não estava dando a mínima pro coração, pra um possível segundo infarto. Pra nada. Renato só queria dissuadir a esposa daquela idéia escabrosa. Correu até a cozinha e no melhor estilo “dramalhão mexicano” pegou o faqueiro inteiro e ofereceu `a esposa:
-- Pronto! Escolhe! Crava uma no meu peito e acaba logo com isso!
-- Bimbão! O que é isso?
-- E não me chame mais de bimbão! Bimbao é o escambal!
A jovem senhora, não mais se contendo, caiu no sofá-cama e desatou a chorar.
Pronto. Um a zero. Coisa que ele detestava era ver mulher chorando. Bastava uma choramingada e lá se ia a discussão por água a baixo. Toda uma estratégia perdida por causa do seu coração mole de machão-latino-de-meia-idade irrecuperável!
-- Também não precisa chorar, né? – disse sentando-se perto da esposa e abaixando o tom de voz.
Era o Bimbão novamente.
-- Eu não sabia que você ia ficar assim, aborrecido. Eu só queria fazer uma surpresa. – choramingou a moça.
-- Pois conseguiu mesmo. Estou que sou pura surpresa. Mas uma dessas e eu paro na UTI de novo. Mas... calma. – consertou em seguida, vendo que a esposa já preparava outra cara de choro. De onde saiu essa idéia de posar pelada? Que da sua cabecinha ingênua é que não foi!
-- Não é pelada, não. É nua. Você nunca ouviu falar de “nu artístico”?
Renato deu uma gargalhada histérica.
-- Essa é boa!!! Pelada e nua é tudo a mesma porcaria, Estelinha. Quem inventou esta história de nu artístico só estava procurando uma boa desculpa para ver pornografia e ainda tirar onda de intelectual! Depois eu é que sou o pervertido. Esqueceu que você me fez jogar fora a minha coleção da playboy, esqueceu?
Dessa vez foi a vez da Estela estourar.
-- Renato, eu não vou sair na capa da playboy! Eu não vou nem tirar foto!! Eu vou posar para os alunos da universidade. Eu não sou nenhuma desclassificada, não!
-- Por isso mesmo! Além de tudo, pelada na frente de um bando de famígeros mal-saídos da puberdade!! Olha que a sua foto vai parar na internete, hein? Aí nem com reza brava! O que é que os vizinhos vão dizer?
Estela suspirou fundo. Num gesto muito seu, abocanhou impacientemente o dedo mindinho. Renato gelou. Conhecia de cor a linguagem corporal da esposa. Ela estava à beira de ataque de nervos. Os olhos de Estela fixavam o telefone e ele sabia: ela ia ligar para mãe. Colocar a sogra no meio era covardia!
“Pensa rápido, Renato. Pensa!”
Precisava de um argumento definitivo que encerrasse a discussão e que de preferência o elevasse a herói na frente da mulher. Resolveu mudar de tática e parecer mais compreensivo para ganhar tempo:
-- Meu anjo, vem cá – chamou Bimbão, solícito. Vamos fazer o seguinte: você perdoa este seu marido ignorante e tenta explicar mais uma vez o que é que você vai fazer lá na faculdade de belas artes. É assim que se chama o lugar, né?
-- É... – respondeu Estela entre reticências.
Renato caprichou na piscadela típica e deu uma batidinha no sofá, ao seu lado. Ela hesitou.
-- Eu vou te ouvir dessa vez. Só falo no final. Combinado?
Estela fez que sim.
Sentada ao lado do esposo, ela finalmente tirara o mindinho de dentro da boca, mas ainda olhava o telefone pelo canto do olho.
-- Então? – perguntou o marido.
-- Então, Bimbão. Eu fui convidada para posar semi... semi, ouviu bem? Semi-nua para a classe de desenho anatômico, como modelo remunerada.
-- Modelo é?
-- É... modelo vivo, entendeu?
Breve silêncio. Renato coçou o queixo.
-- Então me dá um exemplo de como você posaria.
Estela arregalou os olhos. Fora pêga desprevenida. Pensou um pouco. Tirou a blusa e sentou na mesinha do centro da sala-de-estar, fazendo um gesto delicado com as mãos.
Bimbão, boquiaberto diante da cena, não se agüentou e perdeu as estribeiras:
-- O que é isso, Estelinha? Onde já se viu?! Você viu com que rapidez você arrancou a blusa? Ora, faça-me o favor! E essa pose? Se isso aí é arte, o Paulão mecânico é o maior patrono de artes do Rio de Janeiro! Ora faça-me o favor!
E vendo que Estela já de mindinho na boca se dirigia ao telefone, emplacou como cartada final:
-- Já pensou o que o seu pai lá em Canoa Quebrada vai dizer quando souber dessa história?
No que a esposa do ex-Bimbão retorquiu:
-- Cadê aquele faqueiro? Onde foi parar aquele maldito faqueiro?!

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Frio


Exatamente às 6 horas, como em todos os outros dias, o despertador tocou. Meus olhos se esforçaram para abrir. Minha mãe, já de pé, chamou-me delicadamente, ignorando que o maldito relógio possivelmente despertara – com seu som estridente – a mim e a todo o prédio.
“Deveria ser proibido acordar tão cedo durante o inverno nesta cidade”, pensei. Inevitavelmente o choque térmico entre o corpo quentinho sob o cobertor e o frio branco do banheiro acordou-me de vez. Munida de uma força sobre-humana me despi e, antes de congelar, abri o chuveiro, cuja água – quase fervendo – agredia minha pele.
Devidamente vestida com o uniforme do colégio – o qual escondia duas blusas, uma fina calça de lã e três meias – sentei-me à mesa para tomar o café com torradas à minha espera.
“Preciso de umas luvas”. Beijei o rosto quente e amoroso de minha mãe automaticamente. E automaticamente peguei minha mochila, encarando sem estímulo o frio da rua.
Sem dúvida fora uma das noites mais frias daquele ano. Ainda que não houvesse chovido, o ar estava úmido e o chão molhado. Procurei caminhar a passos largos e rápidos em direção à escola, que ficava a alguns metros de casa. Tinha o intuito de aquecer-me. A rua, pouco movimentada, parecia particularmente ainda mais gelada e mais longa. Sentia minha boca rachar e meu nariz doer.
Como que para encurtar a distância, passei a me entreter, soltando ar quente pela boca e provocando um vaporzinho à minha frente.
A uma certa altura, deparei-me com uma figura encolhida, sentada à porta de um restaurante famoso da cidade. Suas roupas eram escuras. Uma onda de medo passou repentinamente pelo meu corpo tão protegido. Entretanto, diminuí a velocidade do meu caminhar.
Intrigou-me não poder ver os olhos daquela pessoa, pois sua cabeça pendia sobre suas pernas. Se pudesse, seu olhar certamente me diria o porquê de estar naquela hora num lugar tão cruelmente frio. Ao passar por tal figura, analisei rapidamente suas mãos, à mostra: tinham uma cor indescritível. Fechei os olhos por um instante, recordando a silhueta que, agora, havia ficado para trás. Parecia imóvel.
Algo em mim pedia-me que voltasse, mas o frio, mais forte, mandava-me continuar meu caminho.
Já em sala a triste figura havia fugido de minha mente, e eu só pensava o quão frias eram a sala, as carteiras; o quão frio era o meu professor Durante o recreio, uma pequena parte da imensa quadra de esportes fora – com em todas aquelas manhãs de inverno – agraciada com alguns raios do sol que discretamente aparecia. Nada de jogos, correrias ou gritos. Todos procurávamos nos espremer solidária e pacificamente no “cantinho do sol”, como o chamávamos.
*****
Os alunos, em êxtase, aglomeraram-se na saída da escola, num breve calor humano. Desci a rua em direção à minha casa.
Com o coração aos saltos, vi à minha frente uma multidão que assistia de modo frio e absorto a uma cena qualquer. Qualquer? Sem perceber passei a andar mais depressa. A multidão e o que parecia ser uma ambulância permaneciam em frente ao restaurante famoso. Imediatamente a figura congelada em meu pensamento voltou a intrigar-me.
Quando finalmente me aproximei – entre confusão e desespero – não encontrei o que temia ver.
_O que aconteceu? – perguntei tremendo a uma senhora ao lado.
_Mas uma vítima desse frio horroroso. Já recolheram o corpo.-respondeu com frieza.
Meu rosto e mãos estavam em brasas. Meu corpo e minha alma queimavam. Queimam.
Eu só me lembrava da indefinível cor da pele daquela figura cujo rosto eu jamais vi, mas que me assombra em todos os intermináveis invernos da minha vida.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Moinho


Abriu os olhos devagar. A cortina de linho deixava entrar em seu quarto os primeiros raios de sol daquele dia frio de outono. O silêncio era absoluto, e embora a janela estivesse fechada, podia quase ouvir o vento tocando uma melodia harmoniosa, interpretada apenas pelo bailar das folhas que ao caírem cobriam inteiramente o chão, criando um tapete multicolorido na frente da casa.
Era a primeira vez que acordara antes do despertador.Talvez porque sequer havia dormido. Os pensamentos eram muitos e a mente se recusara a calar durante a noite, enquanto o corpo tentava em vão repousar. Não eram os outros que ela temia.Temia a si mesma. Temia a própria censura, a própria reprovação. Nada possuía, além da consciência.
Teve ímpetos de permanecer na cama até que a culpa se fosse de vez, mas era inútil ignorá-la. Talvez não dessem falta dela. O mundo estava muito ocupado naquela manhã que as futuras gerações chamariam histórica. O império em crise havia escolhido seu 43o presidente no dia anterior. Não sabia prever o futuro, mas sentia que o sonho do Dr. King era diferente. Seu sonho não era em preto e branco, mas colorido, tal qual as folhas que insistiam em cair. Cada cor possuía igual importância naquela bonita aquarela criada pela natureza.
Enfim levantou-se e sentiu o chão frio. Suspirou e inspirou a saudade do cheiro do café forte coado na hora. Decidiu-se: cavara o abismo. Restava-lhe encará-lo.

quarta-feira, 22 de outubro de 2008


Churros Recheados Com Doce de Leite

(...)
Dia desses eu passeava com meu esposo que não gosta de ser chamado de gringo numa bela praia de Cabo Frio à noite. Era nosso segundo casamento e primeira lua-de-mel, história meio complicada mas muito romântica. O passeio estava muito agradável, o riso rolando solto e aquela sensação de que só nós dois existíamos naquele momento tão precioso. A brisa marítima vinha arrepiar os pelinhos dos braços e bagunçar o cabelo que o esposo tentava em vão tirar dos meus olhos. Fazíamos planos irretocáveis para o futuro ao som do saltinho da minha recém-comprada-sandália sendo arrastada preguiçosamente nas pedras do calçadão. Ah… que céu lindo, cheio de estrelas (que o esposo prometia uma por uma me dar), que delícia de brisa balançando o vestido florido, que cheiro de… churros recheados com doce de leite?
Apertei a mão do esposo e anunciei:
-- You’ve got to taste this!
Ali, no meio da praia, à noite e em pleno junho, quando Cabo Frio fica quase deserto, sem barraquinhas, sem parque, sem turistas… eu tive a visão do paraíso: uma barraquinha de churros!! O esposo estrangeiro iria conhecer o gosto da minha infância. Cinquenta centavos cada. Ainda tá quentinho? Sim. Capricha no doce de leite, moço!
Sentamos no banquinho cheio de terra. O esposo deu a primeira mordida meio sem jeito e fechou os olhos. A expressão do seu rosto disse mais que mil palavras estrangeiras poderiam um dia expressar. Satisfeita, voltei-me para o meu churro. Aquela textura, aquele aroma… Fase primeira: o tato. Lembrei-me das mãos macias da mãezinha segurando a minha, ajudando-me a descer do ônibus e atravessar a rua na rodoviária em direção à barraquinha de churros, Sempre a mesma. Eu, de uniforme, olhava com grandes olhos o moço escolher um bem grande, passar no açúcar e rechear com doce de leite. Verdade que quando se é criança tudo parece maior. Entrávamos em outro ônibus, sentávamos no “altinho” e saboreávamos juntas aquele presente bem devagarinho, para não acabar rápido.
O cheiro. Antes de se comer o churro é preciso inalar o seu aroma até que se fique com água na boca. Aí, sim. Aí pode se comer com gosto.
O sabor. E daí que foi frito sabe-se lá a que horas e em que circunstâncias? E daí se não é lá muito saudável? Quem se lembra desses detalhes uma vez que o churro derrete na boca, trazendo indescritíveis sensações?
Pronto. Findo. Uma lágrima de saudade escorre do canto dos olhos. Muitos cheiros, texturas e gostos me lembram a minha infância em Petrópolis, mas nada jamais se comparou aos churros recheados com doce de leite que eu comia em companhia de minha mãe. Viro-me para o esposo e qual não é minha surpresa ao vê-lo de volta na barraquinha, um Real na mão, olhos grandes, caprichando no português, a pedir mais dois.
Agora ele também teria do que se recordar quando, no futuro, avistasse uma barraquinha de churros.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Alice no País de Mary Poppins (ou na Austria?)




Sempre fui apaixonada. Apaixonei-me pela literatura desde muito cedo. Éramos felizes, em nosso triângulo amoroso: a leitura, a escrita e eu. Confesso que sentia prazer com a primeira, mas era a escrita quem me proporcionava momentos de êxtase, pois que através dela recebia sempre o reconhecimento que me afagava o ego.
Mas como boa amante, sabia que as duas me completavam e delas tirava o máximo, sem me preocupar com o futuro. Foi quando aconteceu. Final dos anos 80. Eu tinha treze anos (quase uma Lolita)e cursava a 8a. série quando a notei. Já a conhecia, mas a ignorara até então. Foi-me apresentada pela enérgica e inesquecível professora Alice. Ah! Alice, a que fazia questão de afirmar, negando: não viera do País das Maravilhas. Alice, a mestra e maestra maior.
Poderia descrevê-la? Talvez uma Mary Poppins Tupiniquim. Em verdade, ela em muito me lembrava ambas personagem e atriz principal de um de meus filmes prediletos: The Sound of Music. Cabelos loiros e curtos, estilo Julie Andrews, ela, embora não cantasse, me encantou. Alice era uma encantadora! Encantou-me não com a voz suave, mas com os seus arroubos; não com as notas musicais, mas com as regras gramaticais.
Alice me reapresentou a gramática. Dela virei escrava desde então. Não sendo forte o bastante para resistí-la, deixei-me levar por ela e me atirei num abismo sem volta. Vi meus sonhos de menina aos poucos serem ofuscados por ELA. Onde a escritora? Onde a amante? Restou-me, então, ensiná-la, passá-la adiante. Sonho um dia dela me desvencilhar, pois que ela me segue aonde quer que eu vá. Sou apenas sua sombra.
Alice! Por que me encantastes?

quarta-feira, 15 de outubro de 2008




A Lucidez Perigosa
Clarice Lispector

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já me aconteceu antes.

Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade
- essa clareza de realidade
é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.