domingo, 4 de setembro de 2011

A resposta (texto antigo... bateu saudade)





Quando criança, em qualquer momento em que uma dúvida me assaltasse, por mais inibida que fosse, eu procurava questionar os adultos e me satisfazia com a resposta dada. No meu mundinho os adultos tinham as respostas para todas as perguntas. Gente grande sabe tudo. Não aceitava, apenas acreditava. Bons tempos aqueles! Pergunta alguma ficava sem resposta. Perguntou: batata! Tinham a resposta pronta para mim. Por mais chocante que a pergunta soasse.
Aliás, as respostas que mais me marcaram foram aquelas que fizeram meus pais (meus adultos preferidos) suarem a camisa para encontrar. Como à que meu pai me deu certa vez quando, ainda bem pequena, parada ao seu lado num ponto de ônibus em Petrópolis, li uma palavra rabiscada no muro e, como a desconhecia, perguntei bem alto ao meu desconcertado progenitor:
⎯ Papai, o que é bo-ceta?
No que o mui rápido e eficaz pai, observado de perto por todos os curiosos no ponto de  ônibus, respondeu quase num sussurro:
⎯ É um palavrão, minha filha.
O chato é que na adolescência o meu oráculo se desfez. Os adultos perderam a credibilidade para mim. Decidi que não valia a pena sequer perguntar, porque a resposta certamente não seria de cunho científico ou filosófico, mas arbitrário:
⎯ Por que eu não posso tomar banho depois de comer, oras?
⎯ Porque faz mal.
⎯ Faz mal por quê?
⎯ Por que sim!
Mais tarde a faculdade ampliou meus horizontes e eu descobri um novo oráculo: a biblioteca da Faculdade de Letras da UFRJ. Ah… filosofia, letras e arte! Respostas para perguntas as quais eu sequer havia elaborado. Um mundo novo se abriu: subitamente as questões eram tão importantes quanto suas respostas (estas últimas, aliás, não precisavam mais ter caráter científico, bastasse fossem opções do que poderia vir a ser uma conclusão aberta à discussão). Um deleite!
Até que um dia eu me descobri adulta e sem tempo para perguntas ou coragem para encontrar as respostas. Responsabilidades, contas para pagar, e uma montanha de questões a resolver. Muitas vezes era preciso ignorar a pergunta que brotava. Quem lá tinha tempo para isso? A esquerda que indagasse os porquês ao governo ora essa!
Foi quando eu descobri meu terceiro oráculo: a banda larga! Agora sim, bastava digitar algumas palavras que o Google vinha imediatamente com centenas e milhares de lugares e respostas independentemente do cunho da questão. Tanta informação! Da noite para o dia eu viarava mecânica, doutora e astronauta. Não necessariamente nessa ordem. As respostas eram tantas que me embriagavam. Claro que dava um trabalho danado coletá-las, dividi-las por categorias e decidir qual delas era a mais verídica e/ou satisfatória. Afinal, era preciso, como qualquer outra pesquisa, colecionar e questionar as respostas (de acordo com o grau de credibilidade da fonte). Um trabalho quase científico.
Mas veja bem, meu caro amigo, que coisa doida é a vida. Não é que de lá para cá eu virei mãe (gente grande) e, sem aviso prévio, fui nomeada o oráculo de alguém? Alguém de uns três anos de idade. Ah! Quantas perguntas a serem respondidas. Quantas respostas a serem “re-perguntadas”. Sim, porque essa minha filhinha e suas perguntas incansáveis não se satisfaz sempre com minhas singelas respostas:
⎯ A câmera não vai funcionar.
⎯ Why?
⎯ Porque está sem bateria.
⎯ Why?
⎯ Porque mamãe esqueceu de carregar.
⎯ Why?
⎯ Porque eu tinha muitas coisas para fazer...
⎯ Why?
E assim vai… (agora eu sei porque algumas respostas devem ser simplesmente arbitrárias, caramba!)
Entretanto o mais interessante é perceber que a menininha ensaia suas próprias respostas. Um belo dia, percebendo que a lua não estava mais cheia, ela mais que depressa apontou:
⎯ Look, mommy! the moon is broken!
E quando eu já ensaiava uma resposta para a pergunta que eu achava que se seguiria, ela arrematou com a explicação que ela traz na ponta da língua sempre que se encontra em apuros:
⎯ It wasn't me! It was Tainá (a irmazinha de 1 aninho que dormia no seu assento de bebê)!!!
Eu não encontraria melhor resposta.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Te perdoo

Não vês que te perdoo?
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Tu vês o dia nublado
E tua vista se acinzenta
Teu café amarga
As horas do teu dia se arrastam
Até que teu vazio se torne mais presente
 insuportável
E te arrebentes o peito
Rindo-se da tua mortalidade tola
Desconheces o homem que te tornastes
Maldizes teus conceitos
E admites que perdestes a aposta da vida
Sentes que já não podes mais
Mas no fim do dia voltas para casa
Assistes o jornal
te contentas com o sono
e te permites apagar por algumas horas
talvez dias
tua realização, até que ela volte a te assombrar
num outro dia
em que tu tornarás a ver céu cinzento
no mesmo céu em que olho
e só vejo chuva
ardo de desejo
encharco-me em mortalidade
tola e solta,
até transbordar de prazer.
Conheço cada uma das mulheres que me tornei
Rio zombeteira das minhas certezas efêmeras
E percebo que posso mais
E que o concreto não me contenta.
No fim do dia volto para casa
Assisto o jornal
e deixo o sono me levar
certa de que continuo a me encontrar
e me envolver e enlouquecer
sem ti.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Sem Saber

 
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Murros na porta do apartamento 301 ecoam nos corredores do  pequeno prédio de fachada de azulejos do Catete. Fernando sabe que Paula, sua irmã mais nova, dorme à tarde ao voltar do pré-vestibular, mas aquilo já é exagero. Toca a campainha freneticamente em vão. Torna a ligar para o celular da moça. Nada. E ele sem chave! Resolve descer e perguntar ao zelador se viu a Paulinha sair.

Dentro do banheiro, Paula olha para o corpinho imóvel caído ao lado da pia. Não escuta as batidas na porta, não escuta seu próprio coração. Não escuta o choro do bebê.
Catatônica, não sabe precisar o que se passa. Sequer consegue distinguir fantasia de realidade. Não sabe se delira. Não entende nem raciocina. Apenas fixa o olhar no corpinho.

Fernando sobe as escadas certo agora de que Paula ainda está dormindo. Esmurra a porta chamando por ela. O barulho atrai Dona Carmem, a fofoqueira do prédio. Absolutamente confiante de que se trata de alguma briga entre casais, Dona Carmem berra lá da porta do seu apartamento no segundo andar:

-       Olha esta indecência aí!!

Fernando se aborrece e desce as escadas mais uma vez. Bate à porta da fofoqueira para tirar satisfações. Envergonhada  com a súbita reação do rapaz, ela pede desculpas e até se prontifica a ajudar, interessada no desfecho do enredo. “Deve é estar com algum namoradinho, a safadinha”, pensa.

Paula entende que o corpinho não se mexe. Não sabe se o bebê está morto ou vivo. A cabeça de Paula gira. É preciso estar grávida para dar a luz! Ainda sentada, enfim percebe-se sozinha e procura mover as pernas e os braços, mas não sabe que atitude tomar. Sente muito medo. Pavor agudo. O peito arfa. Lembra menstruar. Lembra das cólicas e desconforto nos últimos meses. Confusa, passa a mão sobre o ventre. Num clarão, vê o cordão umbilical. Aquele é seu bebê? Pega o corpinho nos braços sem pensar. O choro finalmente ecoa no banheiro. Está vivo.

Fernando ouve as propostas dos vários vizinhos no corredor no terceiro andar. O zelador sugere chamar um chaveiro. O vizinho do 303 recomenda que pulem da varanda do seu apartamento para a varanda de Fernando. O marido de Dona Carmem só observa. Fernando começa a pensar no pior. Esquece que precisa ir para o trabalho na Tijuca e pensa em Paulinha. Lembra que já há algum tempo ela reclama de dores no abdômen e nas costas. Arrepende-se de toda aquela confusão e decide despachar aquele povo todo dizendo que os pais voltam em breve e que tudo está sobre controle.

Decepcionado e sem nada entender, o grupo se afasta aos poucos, cada qual para seu apartamento. Frases malcriadas entre os dentes são deixadas no corredor agora vazio. Cansado e atrasado, Fernando balança os ombros. Vai ver que ela nem veio para casa. O jeito é esperar que os pais descubram o paradeiro da moça. Passa uma mensagem de texto para o pai pelo celular e vai embora trabalhar.

Paula embrulha o bebê numa toalha limpa e procura instintivamente  a tesoura e o álcool no armário debaixo da pia. Depois de cortar o cordão que prova para si mesma que aquele é mesmo seu bebê, resolve investigar e vê que ele não sangra. Ele? Não. Ela. É uma menina. Chocada com sua própria iniciativa, Paula amamenta a filha que ela ignorava conceber. Não sabe precisar que sentimento – se algum – experimenta. Abre a porta do banheiro e vai com a menina para o seu quarto. O bebê dorme tranquilamente. Paula põe a menina em sua cama com cuidado e deita-se a seu lado. Torna a olhar o rostinho daquele recém-nascido e sente certa ternura por ela. Como é possível ser mãe sem saber? Não sabe. Só sabe que um enorme cansaço se abate sobre seu corpo e adormece, já sem medo algum, ao lado da filhinha.