sexta-feira, 28 de novembro de 2008

CAPÍTULO XXXIII / O PENTEADO


Dom Casmurro - Machado de Assis


(Meu texto favorito de Machado, que posto aqui em homenagem aos 100 anos de sua morte Reparem na maneira singular com que o genial autor retrata o primeiro beijo)


E Capitu deu-me as costas, voltando-se para o espelho. Peguei-lhe dos cabelos, colhi-os todos e entrei a alisá-los com o pente, desde a testa até as últimas pontas, que lhe desciam à cintura. Em pé não dava jeito: não esquecestes que ela era um nadinha mais alta que eu, mas ainda que fosse da mesma altura. Pedi-lhe que se sentasse.

--Senta aqui, é melhor.

Sentou-se. "Vamos ver o grande cabeleireiro", disse-me rindo. Continuei a alisar os cabelos, com muito cuidado, e dividi-os em duas porções iguais, para compor as duas tranças. Não as fiz logo, nem assim depressa, como podem supor os cabeleireiros de ofício, mas devagar, devagarinho, saboreando pelo tacto aqueles fios grossos, que eram parte dela. O trabalho era atrapalhado, às vezes por desazo, outras de propósito para desfazer o feito e refazê-lo. Os dedos roçavam na nuca da pequena ou nas espáduas vestidas de chita, e a sensação era um deleite. Mas, enfim, os cabelos iam acabando, por mais que eu os quisesse intermináveis. Não pedi ao céu que eles fossem tão longos como os da Aurora, porque não conhecia ainda esta divindade que os velhos poetas me apresentaram depois; mas, desejei penteá-los por todos os séculos dos séculos, tecer duas tranças que pudessem envolver o infinito por um número inominável de vezes. Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa! Todo eu estou mitológico. Ainda há pouco, falando dos seus olhos de ressaca, cheguei a escrever Tétis; risquei Tétis, risquemos ninfa, digamos somente uma criatura amada, palavra que envolve todas as potências cristãs e pagãs. Enfim acabei as duas tranças. Onde estava a fita para atar-lhes as pontas Em cima da mesa, um triste pedaço de fita enxovalhada. Juntei as pontas das tranças, uni-as por um laço, retoquei a obra, alargando aqui, achatando ali, até que exclamei:

--Pronto!

--Estará bom?

--Veja no espelho.

Em vez de ir ao espelho, que pensais que fez Capitu? Não vos esqueçais que estava sentada, de costas para mim. Capitu derreou a cabeça, a tal ponto que me foi preciso acudir com as mãos e ampará-la; o espaldar da cadeira era baixo. Inclinei-me depois sobre ela rosto a rosto, mas trocados, os olhos de uma na linha da boca do outro. Pedi-lhe que levantasse a cabeça, podia ficar tonta, machucar o pescoço. Cheguei a dizer-lhe que estava feia; mas nem esta razão a moveu.

--Levanta, Capitu!

Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e...

Grande foi a sensação do beijo; Capitu ergueu-se, rápida, eu recuei até à parede com uma espécie de vertigem, sem fala, os olhos escuros. Quando eles me clarearam vi que Capitu tinha os seus no chão. Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso. atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas...

domingo, 23 de novembro de 2008

Nú artístico

(ilustração: Al Moore, artista Americano da década de 50)

-- Pelada, não!
Renato andava bufando de um lado para o outro na minúscula sala do apartamento na praia do Flamengo. As mãos, suadas, balançavam no ar sem parar enquanto as veias do pescoço saltavam coordenadas com as da testa, que fervia `aquela altura do campeonato. Aliás, antes fosse algum final de campeonato. Antes ver o flamengo perdendo um fla-flu de virada nos acréscimos do segundo tempo bem na decisão da Taça Guanabara do que ouvir aquilo.
-- Olha o coração! – implorava a jovem esposa, entre culpada e ressentida.
Mas Renato não olhava. Não estava dando a mínima pro coração, pra um possível segundo infarto. Pra nada. Renato só queria dissuadir a esposa daquela idéia escabrosa. Correu até a cozinha e no melhor estilo “dramalhão mexicano” pegou o faqueiro inteiro e ofereceu `a esposa:
-- Pronto! Escolhe! Crava uma no meu peito e acaba logo com isso!
-- Bimbão! O que é isso?
-- E não me chame mais de bimbão! Bimbao é o escambal!
A jovem senhora, não mais se contendo, caiu no sofá-cama e desatou a chorar.
Pronto. Um a zero. Coisa que ele detestava era ver mulher chorando. Bastava uma choramingada e lá se ia a discussão por água a baixo. Toda uma estratégia perdida por causa do seu coração mole de machão-latino-de-meia-idade irrecuperável!
-- Também não precisa chorar, né? – disse sentando-se perto da esposa e abaixando o tom de voz.
Era o Bimbão novamente.
-- Eu não sabia que você ia ficar assim, aborrecido. Eu só queria fazer uma surpresa. – choramingou a moça.
-- Pois conseguiu mesmo. Estou que sou pura surpresa. Mas uma dessas e eu paro na UTI de novo. Mas... calma. – consertou em seguida, vendo que a esposa já preparava outra cara de choro. De onde saiu essa idéia de posar pelada? Que da sua cabecinha ingênua é que não foi!
-- Não é pelada, não. É nua. Você nunca ouviu falar de “nu artístico”?
Renato deu uma gargalhada histérica.
-- Essa é boa!!! Pelada e nua é tudo a mesma porcaria, Estelinha. Quem inventou esta história de nu artístico só estava procurando uma boa desculpa para ver pornografia e ainda tirar onda de intelectual! Depois eu é que sou o pervertido. Esqueceu que você me fez jogar fora a minha coleção da playboy, esqueceu?
Dessa vez foi a vez da Estela estourar.
-- Renato, eu não vou sair na capa da playboy! Eu não vou nem tirar foto!! Eu vou posar para os alunos da universidade. Eu não sou nenhuma desclassificada, não!
-- Por isso mesmo! Além de tudo, pelada na frente de um bando de famígeros mal-saídos da puberdade!! Olha que a sua foto vai parar na internete, hein? Aí nem com reza brava! O que é que os vizinhos vão dizer?
Estela suspirou fundo. Num gesto muito seu, abocanhou impacientemente o dedo mindinho. Renato gelou. Conhecia de cor a linguagem corporal da esposa. Ela estava à beira de ataque de nervos. Os olhos de Estela fixavam o telefone e ele sabia: ela ia ligar para mãe. Colocar a sogra no meio era covardia!
“Pensa rápido, Renato. Pensa!”
Precisava de um argumento definitivo que encerrasse a discussão e que de preferência o elevasse a herói na frente da mulher. Resolveu mudar de tática e parecer mais compreensivo para ganhar tempo:
-- Meu anjo, vem cá – chamou Bimbão, solícito. Vamos fazer o seguinte: você perdoa este seu marido ignorante e tenta explicar mais uma vez o que é que você vai fazer lá na faculdade de belas artes. É assim que se chama o lugar, né?
-- É... – respondeu Estela entre reticências.
Renato caprichou na piscadela típica e deu uma batidinha no sofá, ao seu lado. Ela hesitou.
-- Eu vou te ouvir dessa vez. Só falo no final. Combinado?
Estela fez que sim.
Sentada ao lado do esposo, ela finalmente tirara o mindinho de dentro da boca, mas ainda olhava o telefone pelo canto do olho.
-- Então? – perguntou o marido.
-- Então, Bimbão. Eu fui convidada para posar semi... semi, ouviu bem? Semi-nua para a classe de desenho anatômico, como modelo remunerada.
-- Modelo é?
-- É... modelo vivo, entendeu?
Breve silêncio. Renato coçou o queixo.
-- Então me dá um exemplo de como você posaria.
Estela arregalou os olhos. Fora pêga desprevenida. Pensou um pouco. Tirou a blusa e sentou na mesinha do centro da sala-de-estar, fazendo um gesto delicado com as mãos.
Bimbão, boquiaberto diante da cena, não se agüentou e perdeu as estribeiras:
-- O que é isso, Estelinha? Onde já se viu?! Você viu com que rapidez você arrancou a blusa? Ora, faça-me o favor! E essa pose? Se isso aí é arte, o Paulão mecânico é o maior patrono de artes do Rio de Janeiro! Ora faça-me o favor!
E vendo que Estela já de mindinho na boca se dirigia ao telefone, emplacou como cartada final:
-- Já pensou o que o seu pai lá em Canoa Quebrada vai dizer quando souber dessa história?
No que a esposa do ex-Bimbão retorquiu:
-- Cadê aquele faqueiro? Onde foi parar aquele maldito faqueiro?!

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Frio


Exatamente às 6 horas, como em todos os outros dias, o despertador tocou. Meus olhos se esforçaram para abrir. Minha mãe, já de pé, chamou-me delicadamente, ignorando que o maldito relógio possivelmente despertara – com seu som estridente – a mim e a todo o prédio.
“Deveria ser proibido acordar tão cedo durante o inverno nesta cidade”, pensei. Inevitavelmente o choque térmico entre o corpo quentinho sob o cobertor e o frio branco do banheiro acordou-me de vez. Munida de uma força sobre-humana me despi e, antes de congelar, abri o chuveiro, cuja água – quase fervendo – agredia minha pele.
Devidamente vestida com o uniforme do colégio – o qual escondia duas blusas, uma fina calça de lã e três meias – sentei-me à mesa para tomar o café com torradas à minha espera.
“Preciso de umas luvas”. Beijei o rosto quente e amoroso de minha mãe automaticamente. E automaticamente peguei minha mochila, encarando sem estímulo o frio da rua.
Sem dúvida fora uma das noites mais frias daquele ano. Ainda que não houvesse chovido, o ar estava úmido e o chão molhado. Procurei caminhar a passos largos e rápidos em direção à escola, que ficava a alguns metros de casa. Tinha o intuito de aquecer-me. A rua, pouco movimentada, parecia particularmente ainda mais gelada e mais longa. Sentia minha boca rachar e meu nariz doer.
Como que para encurtar a distância, passei a me entreter, soltando ar quente pela boca e provocando um vaporzinho à minha frente.
A uma certa altura, deparei-me com uma figura encolhida, sentada à porta de um restaurante famoso da cidade. Suas roupas eram escuras. Uma onda de medo passou repentinamente pelo meu corpo tão protegido. Entretanto, diminuí a velocidade do meu caminhar.
Intrigou-me não poder ver os olhos daquela pessoa, pois sua cabeça pendia sobre suas pernas. Se pudesse, seu olhar certamente me diria o porquê de estar naquela hora num lugar tão cruelmente frio. Ao passar por tal figura, analisei rapidamente suas mãos, à mostra: tinham uma cor indescritível. Fechei os olhos por um instante, recordando a silhueta que, agora, havia ficado para trás. Parecia imóvel.
Algo em mim pedia-me que voltasse, mas o frio, mais forte, mandava-me continuar meu caminho.
Já em sala a triste figura havia fugido de minha mente, e eu só pensava o quão frias eram a sala, as carteiras; o quão frio era o meu professor Durante o recreio, uma pequena parte da imensa quadra de esportes fora – com em todas aquelas manhãs de inverno – agraciada com alguns raios do sol que discretamente aparecia. Nada de jogos, correrias ou gritos. Todos procurávamos nos espremer solidária e pacificamente no “cantinho do sol”, como o chamávamos.
*****
Os alunos, em êxtase, aglomeraram-se na saída da escola, num breve calor humano. Desci a rua em direção à minha casa.
Com o coração aos saltos, vi à minha frente uma multidão que assistia de modo frio e absorto a uma cena qualquer. Qualquer? Sem perceber passei a andar mais depressa. A multidão e o que parecia ser uma ambulância permaneciam em frente ao restaurante famoso. Imediatamente a figura congelada em meu pensamento voltou a intrigar-me.
Quando finalmente me aproximei – entre confusão e desespero – não encontrei o que temia ver.
_O que aconteceu? – perguntei tremendo a uma senhora ao lado.
_Mas uma vítima desse frio horroroso. Já recolheram o corpo.-respondeu com frieza.
Meu rosto e mãos estavam em brasas. Meu corpo e minha alma queimavam. Queimam.
Eu só me lembrava da indefinível cor da pele daquela figura cujo rosto eu jamais vi, mas que me assombra em todos os intermináveis invernos da minha vida.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Moinho


Abriu os olhos devagar. A cortina de linho deixava entrar em seu quarto os primeiros raios de sol daquele dia frio de outono. O silêncio era absoluto, e embora a janela estivesse fechada, podia quase ouvir o vento tocando uma melodia harmoniosa, interpretada apenas pelo bailar das folhas que ao caírem cobriam inteiramente o chão, criando um tapete multicolorido na frente da casa.
Era a primeira vez que acordara antes do despertador.Talvez porque sequer havia dormido. Os pensamentos eram muitos e a mente se recusara a calar durante a noite, enquanto o corpo tentava em vão repousar. Não eram os outros que ela temia.Temia a si mesma. Temia a própria censura, a própria reprovação. Nada possuía, além da consciência.
Teve ímpetos de permanecer na cama até que a culpa se fosse de vez, mas era inútil ignorá-la. Talvez não dessem falta dela. O mundo estava muito ocupado naquela manhã que as futuras gerações chamariam histórica. O império em crise havia escolhido seu 43o presidente no dia anterior. Não sabia prever o futuro, mas sentia que o sonho do Dr. King era diferente. Seu sonho não era em preto e branco, mas colorido, tal qual as folhas que insistiam em cair. Cada cor possuía igual importância naquela bonita aquarela criada pela natureza.
Enfim levantou-se e sentiu o chão frio. Suspirou e inspirou a saudade do cheiro do café forte coado na hora. Decidiu-se: cavara o abismo. Restava-lhe encará-lo.