sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Língua e Herança



Capa: 
 A Construção da Ideia da Lusofonia em Portugal
Não chóro por nada que a vida traga ou leve. Há porém paginas de prosa me teem feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noute em que, ainda creança, li pela primeira vez numa selecta, o passo celebre de Vieira sobre o Rei Salomão, "Fabricou Salomão um palacio..." E fui lendo, até ao fim, tremulo, confuso; depois rompi em lagrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquelle movimento hieratico da nossa clara lingua majestosa, aquelle exprimir das idéas nas palavras inevitaveis, correr de agua porque ha declive, aquelle assombro vocalico em que os sons são cores ideaes - tudo isso me toldou de instincto como uma grande emoção politica. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda chóro. Não é - não - a saudade da infancia, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção d'aquelle momento, a magua de não poder já ler pela primeira vez aquella grande certeza symphonica.
Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. - Fernando Pessoa





Quando minha filhinha mais velha completou  1 ano e meio sem pronunciar uma palavra sequer (nem mesmo mamãe), o pediatra começou a se preocupar. Organizou e requisitou uma bateria de testes para ter certeza de que a menininha não tinha nenhum problema de audição, fala etc. Feitos os testes (embora todos tenham apresentado resultado negativo),  chegou-se à conclusão de que ela deveria ser acompanhada por determinados profissionais, tais quais uma fonoaudióloga que a visitaria uma vez por semana, só para garantir…
O meu coração de mãe de primeira viagem culpou-se o tanto quanto pode ante aquela situação imprevista. Multipliquei todos os esforços e reavivei a professorinha que havia em mim, tirando todos os truques da cartola, entre livros, músicas, brincadeiras, abecedário e mais. Grávida, então, da segunda filhinha, achei que se fazia necessário uma solução conveniente, prática e rápida, pois a vinda do novo bebê poderia complicar ainda mais aquele cenário. Tomei uma decisão muito séria, embora desejando que fosse temporária, e que considero qual sacrifício dos mais penosos em nome do desejo de ajudar no seu progresso: deixei de falar em português com a filhinha, passando a usar apenas a língua inglesa, a mesma usada pelos “profissionais” que trabalhavam com ela semanalmente; a mesma que ela ouve diariamente no país em que ela nasceu, mora, interage e cresce.
Aos olhos de uma pessoa comum, este detalhe passa despercebido. Entretanto, sinto como se a principal (e, no momento, única) herança cultural que eu poderia diretamente oferecer às minhas menininhas lhes fosse cruelmente negada.  Não bastasse a falta de convívio com os avós maternos, família e amigos brasileiros, os quais em suas cabecinhas infantis fazem todos parte de um mundo quase abstrato, quase lúdico, a elas apresentado em forma de algumas poucas fotografias e, eventualmente, vozes ao telefone; não bastasse ainda a escassez de materiais, brinquedos, livros bilíngues aos quais ambas tivessem acesso, até mesmo o diálogo em português é inexistente em suas tão jovens vidas.
Sim. Sem dúvida terei tempo de corrigir tal “detalhe”. Mas este não é o ponto em questão.
Amo meu país. Amo minha língua. Fiz dela um meio de ganhar a vida. Trato-a com carinho, respeito e dedicação. Aprendi que minha Pátria é minha língua e vice-versa e por isso trago ambos no peito e na mente. Dela me utilizo desde que me reconheci enquanto pessoa para expressar meus sentimentos, idéias, sonhos, projetos. Sofro ao vê-la maltratada, regojizo-me ante sua beleza e magnitude. Com ela sonho, revejo, reconstruo. Canto as canções do meu povo. Recito os poemas mais belos. Maldigo as notícias mais revoltantes. Grito o nome do meu time. Balbucio palavras de amor. Xingo. Gaguejo. Construo textos. Fabrico testes. Repito as frases ditas. Descrevo as paisagens da minha infância e as passagens da minha vida. Falo. Escrevo.

Ela é tudo o que verdadeiramente possuo. É com ela que me reconheço. Ainda que fosse poliglota, viajasse aos quatro cantos do planeta e jamais voltasse a ouvir minha língua mãe, ela estaria gravada no meu íntimo como parte do ser que sou, qual traço de DNA, carregando com ela minha cultura, meus antepassados, meu país e sua história.


2 comentários:

Romanzeira disse...

Oi Carla! Nossa, deve ter sido muito difícil, para você, deixar de falar em português com sua filha. A lingua é identidade que a gente quer deixar para os filhos com herança, principalmente quando se está distante da terra natal.

Há alguns anos viajei para a Argentina a trabalho, eu lia para um amigo meu que é cego e ele estava coletando material para sua tese de doutorado. Passei duas semanas só falando português com ele, e eu estava adorando porque gosto de conhecer outras linguas, elas são a ponte para conhecer outras culturas. No final da segunda semana já compreendia bem o espanhol dos argentinos e tinha perdido medo de falar.
Quando voltamos ao Rio, mais precisamente quando passei no guiche do aeroporto não me lembro para quê e pela primeira vez em duas semanas eu falei portugues com alguem que não era o meu amigo tive uma sensação de libertação, algo como "Sim, não preciso mais estar alerta para o que os outros dizem. Estou em casa!" Até hoje quando me lembro disso, foi uma sensação inesquecível e me emociona muito.
Nossa língua é nossa casa, nossa pátria, é identidade que se expressa nas nuances mais sutis.
Muito bacana sua crônica.

Bjo.

Juliêta Barbosa disse...

Carla,

Há tempos que tento entrar em seu blog e não consigo. Só hoje, ao clicar na sua foto da "Crônica do Dia" é que deu certo. Aproveitei para colocar em dia os textos que eu havia deixado de ler. Vou adicionar essa nova página aos meus favoritos pra ver se vai dar certo.Texto lindo, emocionante! Você é demais!Beijos.

PS: Quando eu tentava entrar, aparecia:horóscopos!