quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O reencontro



Nas raras vezes em que tenho tempo para limpar esta ou aquela gaveta, organizando ou fingindo organizar a minha infinita e onipotente “papelada”, sempre sou felicitada com alguma surpresa boa. Sabe aquela sensação vitoriosa de encontrar alguma nota de dinheiro - da qual você nem havia dado falta - no bolso da jaqueta guardada e cheirando a naftalina? Pois as minhas descobertas são ainda mais prazerosas. Morando tão longe de uma terra e de uma gente tão queridas, não raro me sinto emocionada, quase às lágrimas mesmo, com os achados da minha montanha de papéis.

Às vezes encontro uma carta ou bilhete no meio das contas para pagar e me sinto tal qual uma princesa resgatada do alto da torre. Noutras basta uma capa de um cd que não ouço há décadas, um cheiro do passado num livro jogado no meio das provas para corrigir(como na música de Adriana Calcanhoto) ou uma foto no meio da bagunça para que eu me esqueça de como a vida da gente é corrida e me transporte para algum lugar agradável na minha memória fotográfica.

Da última vez foi exatamente uma fotografia. Coisa por si só surpreendente, visto que a era digital acabou com o papel. Para ver as fotos a gente precisa ligar o computador. Ninguém mais se importa em “revelar” nada. Lembra desse verbo, “revelar”? “Já revelou as fotos da festa?”, “Ainda não”. “Quantas poses tem no filme?”. “Umas 25, mas quando revelar, devem sair umas 27”. Lembra disso?

Pois é. Mas eu achei uma foto de verdade, um pouco velha e solitária, gritando por mim. Senti-me a princípio surpresa, depois culpada, e, por fim, feliz. A foto não tinha lá muita qualidade. Fora tirada por volta de 2003 com uma máquina daquelas descartável. Mas eu não conseguia colocar os dentes para dentro da boca. Ela me fazia sorrir aquele sorriso bobo, de quem se esqueceu que a vida também é interessante às vezes.

Nela um menino de uns 7 anos, cujo nome desconheço, sorria com o bracinho em volta do meu pescoço. O que me fascinava não era a foto, nem o sorriso simpático de criança ou ainda o meu sorriso jovem que naquela época ainda era moreno jambo. O que me emocionava era a lembrança de como aquele menino esperto havia passado em meu caminho e me tocado com seu cárater.

Num flasback sem música (Sim , porque geralmente os meus têm música), vi –me passeando de mãos dadas com o esposo-mais- brasileiro-que-eu no Largo da Carioca, no Rio, num dia ensolarado. Havíamos andado por Santa Teresa, pois eu lhe mostrava onde passei parte da minha vida, nos tempos de faculdade. O dia quente e as andanças convidavam-nos agora a um bom suco de açaí, o preferido do esposo. Sentados num bar vazio e antigo, sorríamos satisfeitos, na espera do suco perfeito que coroaria o dia mais perfeito ainda. Foi quando um menino de braços finos se aproximou e, muito educadamente, ofereceu suas balas de coco por 25 centavos cada. Perguntamos a ele se gostaria de tomar um suco conosco, no que ele prontamente respondeu que não, pois estava trabalhando. A resposta nos surpreendeu, principalmente, pelo tom responsável que vinha daquela pequena pessoa. Daí o esposo, parte sociólogo, parte fotógrafo, ofereceu comprar uma foto dele, que pediu uma explicação. “Ele tira uma foto tua e te paga um Real por ela”, eu respondi. Ele pensou e pensou, fixando o teto do bar. “Mas você não prefere só comprar quatro balas por um Real?”

Perguntamos, vencidos, se as balas eram boas mesmo, só para ouvi-lo falar e conhecer um pouco mais sobre sua história. Ele disse que eram as melhores balas de coco que ELE havia comido e que era sua mãe quem as fazia. Eu comprei uma para provar e concordei com ele: deliciosa! Ele contou sobre sua mãe e seus irmãos. Disse que estava na escola e revelou o que faria com o dinheiro que sua mãe lhe daria de “comissão” . “Vou comprar um rádio e um fone de ouvido no Natal.”, disse orgulhoso.

Perguntei quanto custaria comprar todas as balas que ele levava, no que o menino inquiriu “Mas por que você que comprar tanta bala?” Eu quis muito responder “Pra te ajudar”, mas pensei bem, e vi que ele não precisava nem queria ajuda.

Quando os sucos chegaram, seus grandes olhos castanhos acompanharam o homem que nos servia e quando este trouxe um copo para o “chorinho” eu insisti: “Mas você não quer nem um pouquinho? Está tanto calor.” Ele fez que não. O esposo fez outra oferta. Ele compraria 12 balas e, em troca do suco, tiraria uma foto do menino. Ficou tudo acertado. Compramos as balas e, depois que tomamos o açaí, tiramos aquela foto que eu segurava agora nas mãos.

Ele agradeceu e se despediu, muito contente com seus 3 reais. E nos ficamos ali, mudos, estáticos, já saudosos daquela figura que nunca mais encontraríamos. Mas no dia em que achei a foto eu o reencontrei, e mais uma vez ele me trouxe sua energia boa, que me valeu muito mais que qualquer nota de papel esquecida no bolso da calça. Não me lembro onde coloquei a sua foto depois disso, mas acho que foi de propósito, só para um dia ser novamente surpreendida por ela.

3 comentários:

Abobrinhas Psicodélicas disse...

Mais um belo texto, cara amiga! Por isto, sinto saudades dos nossos papos: sensibilidade e inteligência são artigos raros no mercado. Bjs.

Romanzeira disse...

Olá, Carla,

Caramba, o que posso dizer?! Lindíssimo! Boas lembranças sempre rendem bons textos. O seu é cheio de sensibilidade e muito bem escrito.

* Quando a fotografia, a sensação de receber as fotos reveladas, a surpresa em ver como ficaram, era tão boa. Com a foto digital nunca é o mesmo...

Carla S.M. disse...

Querido Argonauta:
Também sinto muita falta dos nossos papos, e pelos mesmos motivos. Acrescento neles seu humor e amabilidade, que o classificam como espécie em extinção!

Viviane, fico feliz com suas gentis palavras!

Beijos!