domingo, 23 de novembro de 2008

Nú artístico

(ilustração: Al Moore, artista Americano da década de 50)

-- Pelada, não!
Renato andava bufando de um lado para o outro na minúscula sala do apartamento na praia do Flamengo. As mãos, suadas, balançavam no ar sem parar enquanto as veias do pescoço saltavam coordenadas com as da testa, que fervia `aquela altura do campeonato. Aliás, antes fosse algum final de campeonato. Antes ver o flamengo perdendo um fla-flu de virada nos acréscimos do segundo tempo bem na decisão da Taça Guanabara do que ouvir aquilo.
-- Olha o coração! – implorava a jovem esposa, entre culpada e ressentida.
Mas Renato não olhava. Não estava dando a mínima pro coração, pra um possível segundo infarto. Pra nada. Renato só queria dissuadir a esposa daquela idéia escabrosa. Correu até a cozinha e no melhor estilo “dramalhão mexicano” pegou o faqueiro inteiro e ofereceu `a esposa:
-- Pronto! Escolhe! Crava uma no meu peito e acaba logo com isso!
-- Bimbão! O que é isso?
-- E não me chame mais de bimbão! Bimbao é o escambal!
A jovem senhora, não mais se contendo, caiu no sofá-cama e desatou a chorar.
Pronto. Um a zero. Coisa que ele detestava era ver mulher chorando. Bastava uma choramingada e lá se ia a discussão por água a baixo. Toda uma estratégia perdida por causa do seu coração mole de machão-latino-de-meia-idade irrecuperável!
-- Também não precisa chorar, né? – disse sentando-se perto da esposa e abaixando o tom de voz.
Era o Bimbão novamente.
-- Eu não sabia que você ia ficar assim, aborrecido. Eu só queria fazer uma surpresa. – choramingou a moça.
-- Pois conseguiu mesmo. Estou que sou pura surpresa. Mas uma dessas e eu paro na UTI de novo. Mas... calma. – consertou em seguida, vendo que a esposa já preparava outra cara de choro. De onde saiu essa idéia de posar pelada? Que da sua cabecinha ingênua é que não foi!
-- Não é pelada, não. É nua. Você nunca ouviu falar de “nu artístico”?
Renato deu uma gargalhada histérica.
-- Essa é boa!!! Pelada e nua é tudo a mesma porcaria, Estelinha. Quem inventou esta história de nu artístico só estava procurando uma boa desculpa para ver pornografia e ainda tirar onda de intelectual! Depois eu é que sou o pervertido. Esqueceu que você me fez jogar fora a minha coleção da playboy, esqueceu?
Dessa vez foi a vez da Estela estourar.
-- Renato, eu não vou sair na capa da playboy! Eu não vou nem tirar foto!! Eu vou posar para os alunos da universidade. Eu não sou nenhuma desclassificada, não!
-- Por isso mesmo! Além de tudo, pelada na frente de um bando de famígeros mal-saídos da puberdade!! Olha que a sua foto vai parar na internete, hein? Aí nem com reza brava! O que é que os vizinhos vão dizer?
Estela suspirou fundo. Num gesto muito seu, abocanhou impacientemente o dedo mindinho. Renato gelou. Conhecia de cor a linguagem corporal da esposa. Ela estava à beira de ataque de nervos. Os olhos de Estela fixavam o telefone e ele sabia: ela ia ligar para mãe. Colocar a sogra no meio era covardia!
“Pensa rápido, Renato. Pensa!”
Precisava de um argumento definitivo que encerrasse a discussão e que de preferência o elevasse a herói na frente da mulher. Resolveu mudar de tática e parecer mais compreensivo para ganhar tempo:
-- Meu anjo, vem cá – chamou Bimbão, solícito. Vamos fazer o seguinte: você perdoa este seu marido ignorante e tenta explicar mais uma vez o que é que você vai fazer lá na faculdade de belas artes. É assim que se chama o lugar, né?
-- É... – respondeu Estela entre reticências.
Renato caprichou na piscadela típica e deu uma batidinha no sofá, ao seu lado. Ela hesitou.
-- Eu vou te ouvir dessa vez. Só falo no final. Combinado?
Estela fez que sim.
Sentada ao lado do esposo, ela finalmente tirara o mindinho de dentro da boca, mas ainda olhava o telefone pelo canto do olho.
-- Então? – perguntou o marido.
-- Então, Bimbão. Eu fui convidada para posar semi... semi, ouviu bem? Semi-nua para a classe de desenho anatômico, como modelo remunerada.
-- Modelo é?
-- É... modelo vivo, entendeu?
Breve silêncio. Renato coçou o queixo.
-- Então me dá um exemplo de como você posaria.
Estela arregalou os olhos. Fora pêga desprevenida. Pensou um pouco. Tirou a blusa e sentou na mesinha do centro da sala-de-estar, fazendo um gesto delicado com as mãos.
Bimbão, boquiaberto diante da cena, não se agüentou e perdeu as estribeiras:
-- O que é isso, Estelinha? Onde já se viu?! Você viu com que rapidez você arrancou a blusa? Ora, faça-me o favor! E essa pose? Se isso aí é arte, o Paulão mecânico é o maior patrono de artes do Rio de Janeiro! Ora faça-me o favor!
E vendo que Estela já de mindinho na boca se dirigia ao telefone, emplacou como cartada final:
-- Já pensou o que o seu pai lá em Canoa Quebrada vai dizer quando souber dessa história?
No que a esposa do ex-Bimbão retorquiu:
-- Cadê aquele faqueiro? Onde foi parar aquele maldito faqueiro?!

2 comentários:

Romanzeira disse...

Crônica muito divertida! Muito legal a como vc captou as nuances do relacionamento, os gestos, as reações - os personagens ficaram bem caracterizados – e traduziu de forma bem humorada.

Carla S.M. disse...

Obrigada pelo comentário, Viviane. Eu quase nunca me volto para o cômico... sou cheia de drama!