quinta-feira, 7 de maio de 2009

Interrupção


Depois de rodar por horas sem ter certeza de seu destino, Fernanda foi delicadamente solicitada pelo trocador a se retirar do ônibus, que finalmente chegara ao seu destino final: a rodoviária. Um pouco desnorteada, a moça se levantou com certo esforço e procurou aparentar controle, embora sequer pudesse sentir o chão. Alcançou com bastante dificuldade um orelhão, mas, enquanto procurava um cartão telefônico na bolsa, concluiu que não havia pessoa para quem pudesse ligar naquele momento. Por mais que tentasse, não conseguia concatenar as idéias, tampouco sabia ao certo que sentimento lhe ia na alma. Alma? Pela primeira vez na vida cogitava sua existência e um calafrio lhe percorria a espinha.
Uma dor aguda interrompeu seus pensamentos. Temeu perder os sentidos e acordar num hospital. Esta razão a impulsionou a desistir da ligação impossível e procurar o banheiro. Colheu algumas moedas no bolso da calça jeans e estendeu à mulher na roleta, que lhe apontou os pedaços de papel higiênico pré-cortados e dobrados em pequenos pedaços dispostos de maneira organizada numa prateleira. Notou que uma outra mulher passava pano molhado no chão, cantarolando uma melodia gospel que vinha de um rádio de pilha perto da pia.
Escolheu ao acaso o pedaço de papel higiênico a que tinha direito e concentrou sua atenção na geografia daquele banheiro de rodoviária. Precisava de privacidade e queria estar o mais afastada possível da porta de entrada. Concentrou suas forças neste intento, mas foi bruscamente interrompida por aquela dor que insistia em vingar-se dela.Fernanda precisou apoiar-se na pia para não cair e este gesto chamou a atenção da mulher que cantava.

--- Moça. Você está sangrando.

Sim, ela sangrava muito além daquele sangue, o qual agora pintava de vermelho o chão que a mulher acabara de limpar.
De um salto a mulher segurou Fernanda pelos braços e a arrastou até uma cadeira.

--- Você está machucada? Maria, vá chamar alguém, meu Deus. A moça precisa de uma ambulância.

Fernanda sentia uma enorme vontade de não mais existir. Fechou os olhos e desejou profundamente se esvair junto com aquela hemorragia. Mas abriu-os novamente e, segurando gentilmente a mão daquela desconhecida, pediu-lhe que não chamasse ninguém. A mulher então deitou seus olhos de mãe naquela jovem que sangrava inexplicavelmente no chão de um banheiro público e sentiu uma compaixão maior que si mesma. Perguntou se ela desejava ligar para alguém vir buscá-la, mas Fernanda recusou. A calça jeans estava agora banhada em sangue, mas o sangramento parecia ter diminuído.

--- Raimunda, o que eu faço? – perguntou a mulher da entrada.
--- Feche a porta e vá comprar uma calça para essa moça com o meu dinheiro.

A mulher obedeceu e Fernanda ouviu quando ela saiu, trancando a porta. Munida de uma toalha surrada e sabonete, Raimunda ajudou a moça a dirigir-se a um dos chuveiros, onde ela, sentada numa cadeira de plástico, tomara um rápido e sofrido banho.
Minutos depois Fernanda estava novamente vestida e limpa. Sentada a um canto do banheiro, ao ver aquelas duas mulheres tão bondosas limparem seu sangue espalhado pelo chão, sentiu finalmente que as lágrimas caíam sem cessar e a dor que sentia ia aquém daquela que há pouco ameaçara-lhe a vida.
O banheiro teve as portas reabertas e Fernanda despediu-se de cada uma das duas mulheres com um abraço, prometendo voltar para pagar a ajuda recebida.
Quando ela se foi, Maria viu que a amiga chorava enquanto reajustava a estação de rádio. Ela entendia. Já havia feito aborto antes.


*******

Minha mãe -Vinicius de Moraes


Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fonte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.

Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão. que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe.


10 comentários:

Juliêta Barbosa disse...

Carla,

Que belo texto e como você escreve bem. Uma aula de sensibilidade, solidariedade e amor ao próximo. Menina, estou encantada e emocionada.

Romanzeira disse...

Lindo, Carla! Muito sensível!!! Lindo também o poema do Vinícius.

O Profeta disse...

Fabuloso...!


Doce beijo

Unknown disse...

Oi Carla
(descobri seu nome lendo os comentários).
Gostei muito dos seus posts e da maneira como você aborda temas tão delicados quanto esse.
E eu concordo com outro posto lá de baixo: mãe tinha que ter estepe. Mas, também acho que é tão especial, justamente por não ter.
beijo grande.s

Carla S.M. disse...

Juliêta,
Obrigada pelo carinho. Apesar de tudo, há também muita gente boa nesse mundo.

Viviane,
Acho este poema tão sofrido e comovente, achei que combinava - como se fosse a voz daquele que não nasceu.

Profeta,
Obrigada pela visita.

Cláudia,
Agradeço as palavras gentis e concordo que as mães sejam especiais, por não possuirem estepes.

Beijos a todos

Romanzeira disse...

Então vc acertou em cheio, pois foi essa a sensação que tive - que o poema era a voz do que não nasceu. O aborto é uma questão muito complicada.
O conto ficou muito bom, pois evita uma visão moralista sobre o assunto (o que muitas vezes é inevitável ao contista) e dá uma visão muito sensível - a dor e arrependimento de abrir mão da maternidade, o desespero que leva alguém a fazer isso. Todas essas questões estão no conto, mas nas entrelinhas, de maneira muito sutil. Ficou bacana mesmo.

Romanzeira disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Romanzeira disse...

Ah, sobre o Caetano, minhas críticas não se referem a vc, que é uma fã normal e sensata, mas sim a legião de fãs meio "xiitas", como aquele cara que comentou o primeiro texto sobre a MPB, que endeusam a figura do cantor, (não admitindo críticas), como se ele fosse a última palavra em música, e também a um seguimento da mídia que o elegeu como eterno “vanguardista” e grande “intelectual” (está mais para “pseudo-intelectual”), dando destaque a tudo que ele faz, e o que é pior, ao que ele fala – e ele fala muita bobagem! Rs...
Gosto dele como intérprete, gosto até de algumas músicas compostas na década de 80, mas ultimamente ele está muito meia boca.

P.S.: Aqueles três textos do Argonalta renderam uma discussão, hein! rs...

Carla S.M. disse...

Viviane,
Agradeco muito os elogios, porque admiro muito sua inteligência e sensatez. Realmente eu procurei não partir para o moralismo em momento algum.
Quanto ao post do Caetano, eu só quis deixar minha humilde visão de fã que se fixa na música e pouco acompanha ou se interessa pela "pessoa" do artista (aliás, gosto mesmo é daqueles que ficam fora da mídia, como Marisa Monte, de quem a gente quase nunca ouve falar).
Meu querido amigo Argonauta sabe argumentar muito bem e os seus posts são sempre interessantes e inteligentes (com aquela pitada de sarcasmo que eu adoro) rsrs

Beijos

Nina disse...

Escreve bem demais menina! E agora sobre um assunto bem, bem dificil mesmo :(