Era quarta-feira de cinzas. Pela primeira vez desde que vim morar nos EUA, não me ressenti por não ter passado o carnaval na beira da praia, torrando ao sol de Cabo Frio, sobrevivendo de miojo e vinho. Pela primeira vez em anos eu não senti uma pontinha de inveja das amigas que até hoje exibem o corpinho sarado e dourado nas fotos que mostram seu sorriso ao lado de outros amigos em algum lugar paradisíaco no qual passaram o feriado prolongado, desejado, esperado e planejado o ano inteiro. Pela primeira vez eu não havia passado os cinco dias de carnaval maldizendo o frio de Connecticut, a neve, o trabalho que não tem folga em fevereiro ou a pele ligeiramente amarelada debaixo do suéter. Tampouco tive tempo de vasculhar a memória e ressuscitar os “melhores momentos” dos carnavais da minha vida, os amores passageiros, os porres, as decepções, as aventuras, as praias. Também esqueci das músicas marcantes, dos poemas, melodias e cheiros daquela época, que agora parece tão remota.
Só me lembrava de que era quarta-feira de cinzas e de que amanhecera mais um dia no hospital onde minha filhinha de 2 anos e meio estivera internada desde sábado de carnaval por conta de um vírus que a deixou, entre outras coisas, desidratada. O corpinho frágil deitado no bercinho gelado do quarto parecia cada dia mais fraco. Levantei-me como que apoiada em algo ou alguém que não via, mas pressentia estar ali. Aproximei-me dela e pude perceber que seu peito já não mais arfava, a respiração estava calma. Seus lábios voltavam a ter cor e já não estavam mais rachados. Embora tivesse fundas olheiras, seu rosto não estava mais inchado. Sussurrei-lhe com doçura, com uma certeza que vinha de dentro do peito – não dos médicos – e que desejava sair no grito: “Hoje vamos para casa, meu amor.”
Aproveitando que ela dormia, decidi tomar meu banho. De dentro da bolsa que trouxera para o hospital, tirei o meu suéter rosa. O suéter que comprei para ir a uma festa a qual jamais compareci. O suéter rosa, de gola vê, com delicados detalhes em paetê. Era quarta-feira de cinzas, e eu decidi que vestiria aqueles paetês, e aquela cor vibrante. Decidi que tomaria meu banho e que, cheirando a sabonete, daria bom dia a minha filhinha com um sorriso. Eu tinha certeza que a levaria para casa naquele dia. Nenhum outro.
Em casa, um marido exausto e um bebê de sete meses doentinho nos esperavam. Eles também precisavam de mim e eu deles. Sim. Iríamos, os paetês, a filhinha e eu, ao encontro do anjinho e do papai.
Durante a manha toda, minha filha sorriu. Não vomitou, bebeu líquidos e fez xixi. Ensaiou umas dentadas na comida sem-sal do hospital e sentou-se no meu colo. Ela também sabia o que os médicos só decidiriam à tarde: ela iria para casa.
Às 4 horas da tarde de quarta-feira, a médica deu-lhe alta. Atravessei os corredores do 7o andar do hospital infantil segurando uma versão esquelética da filhinha amada que dera entrada dias antes naquele quarto que íamos deixando para trás. A cada passo sentia as asas crescerem e se abrirem. Tal qual fênix, eu levantava vôo das cinzas, naquela quarta-feira. Saíra ferida, mas vitoriosa: rosa, paetês e esperança no peito, e carregando meu maior tesouro nos braços.