terça-feira, 19 de abril de 2011

Te perdoo

Não vês que te perdoo?
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Tu vês o dia nublado
E tua vista se acinzenta
Teu café amarga
As horas do teu dia se arrastam
Até que teu vazio se torne mais presente
 insuportável
E te arrebentes o peito
Rindo-se da tua mortalidade tola
Desconheces o homem que te tornastes
Maldizes teus conceitos
E admites que perdestes a aposta da vida
Sentes que já não podes mais
Mas no fim do dia voltas para casa
Assistes o jornal
te contentas com o sono
e te permites apagar por algumas horas
talvez dias
tua realização, até que ela volte a te assombrar
num outro dia
em que tu tornarás a ver céu cinzento
no mesmo céu em que olho
e só vejo chuva
ardo de desejo
encharco-me em mortalidade
tola e solta,
até transbordar de prazer.
Conheço cada uma das mulheres que me tornei
Rio zombeteira das minhas certezas efêmeras
E percebo que posso mais
E que o concreto não me contenta.
No fim do dia volto para casa
Assisto o jornal
e deixo o sono me levar
certa de que continuo a me encontrar
e me envolver e enlouquecer
sem ti.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Sem Saber

 
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Murros na porta do apartamento 301 ecoam nos corredores do  pequeno prédio de fachada de azulejos do Catete. Fernando sabe que Paula, sua irmã mais nova, dorme à tarde ao voltar do pré-vestibular, mas aquilo já é exagero. Toca a campainha freneticamente em vão. Torna a ligar para o celular da moça. Nada. E ele sem chave! Resolve descer e perguntar ao zelador se viu a Paulinha sair.

Dentro do banheiro, Paula olha para o corpinho imóvel caído ao lado da pia. Não escuta as batidas na porta, não escuta seu próprio coração. Não escuta o choro do bebê.
Catatônica, não sabe precisar o que se passa. Sequer consegue distinguir fantasia de realidade. Não sabe se delira. Não entende nem raciocina. Apenas fixa o olhar no corpinho.

Fernando sobe as escadas certo agora de que Paula ainda está dormindo. Esmurra a porta chamando por ela. O barulho atrai Dona Carmem, a fofoqueira do prédio. Absolutamente confiante de que se trata de alguma briga entre casais, Dona Carmem berra lá da porta do seu apartamento no segundo andar:

-       Olha esta indecência aí!!

Fernando se aborrece e desce as escadas mais uma vez. Bate à porta da fofoqueira para tirar satisfações. Envergonhada  com a súbita reação do rapaz, ela pede desculpas e até se prontifica a ajudar, interessada no desfecho do enredo. “Deve é estar com algum namoradinho, a safadinha”, pensa.

Paula entende que o corpinho não se mexe. Não sabe se o bebê está morto ou vivo. A cabeça de Paula gira. É preciso estar grávida para dar a luz! Ainda sentada, enfim percebe-se sozinha e procura mover as pernas e os braços, mas não sabe que atitude tomar. Sente muito medo. Pavor agudo. O peito arfa. Lembra menstruar. Lembra das cólicas e desconforto nos últimos meses. Confusa, passa a mão sobre o ventre. Num clarão, vê o cordão umbilical. Aquele é seu bebê? Pega o corpinho nos braços sem pensar. O choro finalmente ecoa no banheiro. Está vivo.

Fernando ouve as propostas dos vários vizinhos no corredor no terceiro andar. O zelador sugere chamar um chaveiro. O vizinho do 303 recomenda que pulem da varanda do seu apartamento para a varanda de Fernando. O marido de Dona Carmem só observa. Fernando começa a pensar no pior. Esquece que precisa ir para o trabalho na Tijuca e pensa em Paulinha. Lembra que já há algum tempo ela reclama de dores no abdômen e nas costas. Arrepende-se de toda aquela confusão e decide despachar aquele povo todo dizendo que os pais voltam em breve e que tudo está sobre controle.

Decepcionado e sem nada entender, o grupo se afasta aos poucos, cada qual para seu apartamento. Frases malcriadas entre os dentes são deixadas no corredor agora vazio. Cansado e atrasado, Fernando balança os ombros. Vai ver que ela nem veio para casa. O jeito é esperar que os pais descubram o paradeiro da moça. Passa uma mensagem de texto para o pai pelo celular e vai embora trabalhar.

Paula embrulha o bebê numa toalha limpa e procura instintivamente  a tesoura e o álcool no armário debaixo da pia. Depois de cortar o cordão que prova para si mesma que aquele é mesmo seu bebê, resolve investigar e vê que ele não sangra. Ele? Não. Ela. É uma menina. Chocada com sua própria iniciativa, Paula amamenta a filha que ela ignorava conceber. Não sabe precisar que sentimento – se algum – experimenta. Abre a porta do banheiro e vai com a menina para o seu quarto. O bebê dorme tranquilamente. Paula põe a menina em sua cama com cuidado e deita-se a seu lado. Torna a olhar o rostinho daquele recém-nascido e sente certa ternura por ela. Como é possível ser mãe sem saber? Não sabe. Só sabe que um enorme cansaço se abate sobre seu corpo e adormece, já sem medo algum, ao lado da filhinha.