quarta-feira, 22 de outubro de 2008


Churros Recheados Com Doce de Leite

(...)
Dia desses eu passeava com meu esposo que não gosta de ser chamado de gringo numa bela praia de Cabo Frio à noite. Era nosso segundo casamento e primeira lua-de-mel, história meio complicada mas muito romântica. O passeio estava muito agradável, o riso rolando solto e aquela sensação de que só nós dois existíamos naquele momento tão precioso. A brisa marítima vinha arrepiar os pelinhos dos braços e bagunçar o cabelo que o esposo tentava em vão tirar dos meus olhos. Fazíamos planos irretocáveis para o futuro ao som do saltinho da minha recém-comprada-sandália sendo arrastada preguiçosamente nas pedras do calçadão. Ah… que céu lindo, cheio de estrelas (que o esposo prometia uma por uma me dar), que delícia de brisa balançando o vestido florido, que cheiro de… churros recheados com doce de leite?
Apertei a mão do esposo e anunciei:
-- You’ve got to taste this!
Ali, no meio da praia, à noite e em pleno junho, quando Cabo Frio fica quase deserto, sem barraquinhas, sem parque, sem turistas… eu tive a visão do paraíso: uma barraquinha de churros!! O esposo estrangeiro iria conhecer o gosto da minha infância. Cinquenta centavos cada. Ainda tá quentinho? Sim. Capricha no doce de leite, moço!
Sentamos no banquinho cheio de terra. O esposo deu a primeira mordida meio sem jeito e fechou os olhos. A expressão do seu rosto disse mais que mil palavras estrangeiras poderiam um dia expressar. Satisfeita, voltei-me para o meu churro. Aquela textura, aquele aroma… Fase primeira: o tato. Lembrei-me das mãos macias da mãezinha segurando a minha, ajudando-me a descer do ônibus e atravessar a rua na rodoviária em direção à barraquinha de churros, Sempre a mesma. Eu, de uniforme, olhava com grandes olhos o moço escolher um bem grande, passar no açúcar e rechear com doce de leite. Verdade que quando se é criança tudo parece maior. Entrávamos em outro ônibus, sentávamos no “altinho” e saboreávamos juntas aquele presente bem devagarinho, para não acabar rápido.
O cheiro. Antes de se comer o churro é preciso inalar o seu aroma até que se fique com água na boca. Aí, sim. Aí pode se comer com gosto.
O sabor. E daí que foi frito sabe-se lá a que horas e em que circunstâncias? E daí se não é lá muito saudável? Quem se lembra desses detalhes uma vez que o churro derrete na boca, trazendo indescritíveis sensações?
Pronto. Findo. Uma lágrima de saudade escorre do canto dos olhos. Muitos cheiros, texturas e gostos me lembram a minha infância em Petrópolis, mas nada jamais se comparou aos churros recheados com doce de leite que eu comia em companhia de minha mãe. Viro-me para o esposo e qual não é minha surpresa ao vê-lo de volta na barraquinha, um Real na mão, olhos grandes, caprichando no português, a pedir mais dois.
Agora ele também teria do que se recordar quando, no futuro, avistasse uma barraquinha de churros.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Alice no País de Mary Poppins (ou na Austria?)




Sempre fui apaixonada. Apaixonei-me pela literatura desde muito cedo. Éramos felizes, em nosso triângulo amoroso: a leitura, a escrita e eu. Confesso que sentia prazer com a primeira, mas era a escrita quem me proporcionava momentos de êxtase, pois que através dela recebia sempre o reconhecimento que me afagava o ego.
Mas como boa amante, sabia que as duas me completavam e delas tirava o máximo, sem me preocupar com o futuro. Foi quando aconteceu. Final dos anos 80. Eu tinha treze anos (quase uma Lolita)e cursava a 8a. série quando a notei. Já a conhecia, mas a ignorara até então. Foi-me apresentada pela enérgica e inesquecível professora Alice. Ah! Alice, a que fazia questão de afirmar, negando: não viera do País das Maravilhas. Alice, a mestra e maestra maior.
Poderia descrevê-la? Talvez uma Mary Poppins Tupiniquim. Em verdade, ela em muito me lembrava ambas personagem e atriz principal de um de meus filmes prediletos: The Sound of Music. Cabelos loiros e curtos, estilo Julie Andrews, ela, embora não cantasse, me encantou. Alice era uma encantadora! Encantou-me não com a voz suave, mas com os seus arroubos; não com as notas musicais, mas com as regras gramaticais.
Alice me reapresentou a gramática. Dela virei escrava desde então. Não sendo forte o bastante para resistí-la, deixei-me levar por ela e me atirei num abismo sem volta. Vi meus sonhos de menina aos poucos serem ofuscados por ELA. Onde a escritora? Onde a amante? Restou-me, então, ensiná-la, passá-la adiante. Sonho um dia dela me desvencilhar, pois que ela me segue aonde quer que eu vá. Sou apenas sua sombra.
Alice! Por que me encantastes?

quarta-feira, 15 de outubro de 2008




A Lucidez Perigosa
Clarice Lispector

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já me aconteceu antes.

Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade
- essa clareza de realidade
é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.